Título: Raúl: o terrível ou o compassivo?
Autor: Jorge G. Castañeda
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/08/2006, Internacional, p. A27

O anúncio da crise de saúde de Fidel Castro deu lugar a muitas especulações: que já morreu; que sua viagem à Argentina para ver a casa da família de Che foi sua despedida; que vai se recuperar para a Cúpula dos Países Não-Alinhados; que a transmissão provisória de poderes a Raúl é o princípio do fim; que se aposentou e não está doente.

Evidentemente, é inevitável a analogia com outros líderes semelhantes: Stalin, Mao ou Brejnev. Em Cuba, há 50 anos, tudo depende de um homem, e este homem depende de sua saúde. Como é impossível saber o que acontecerá até que aconteça, qualquer especulação sobre o desenlace fatal é ociosa. Em compensação, não o é tentar discernir o que pode acontecer, acompanhando a expressão da escritora e especialista em assuntos cubanos Marifeli Pérez-Stable, "depois do velório."

Discernir não é adivinhar, mas sim recorrer a fontes disponíveis. Livros como A Hora Final de Castro, de Andres Oppenheimer; Fim de Século em Havana, de Jean-François Fogel e B. Rosenthal; ou A Autobiografia de Fidel Castro, de Norberto Fuentes, são úteis, como também o são recompilações recentes entre as quais se destaca a dos escritores Rafael Rojas e Velia Cecilia Bobes. Mas todos falam mais do passado que do futuro, e todos já se ressentem da passagem do tempo.

Por isso que o livro, provavelmente mais recente e mais pertinente para o caso, que ocupa todos os cubanólogos, cubanófilos, cubanófobos, é o de Brian Latell, After Fidel: the Inside Story of Castro's Regime and Cuba's Next Leader (Depois de Fidel: a História Interna do Regime de Castro e do Próximo Líder de Cuba), publicado em fins do ano passado.

Latell foi o funcionário nacional de inteligência para América Latina da CIA (a Agência Central de Inteligência americana) entre 1990 e 1994, mas antes de ocupar esse cargo foi um dos analistas secretos mais solicitados da CIA para temas cubanos, e com certeza, também, para assuntos mexicanos. (Além de ter produzido um texto-chave sobre o México em meados dos anos 80, numa entrevista concedida à revista semanal Proceso há alguns meses, ele afirmou que, em sua opinião, não na da CIA, Carlos Salinas de Gortari havia perdido a eleição em 1988. Sua opinião se baseou em toda a informação de que dispunha naqueles anos).

Além de conhecer Latell desde 1986, conheço o trabalho que realizou sobre Cuba para a CIA porque a maioria das análises que deixaram de ser classificadas nos últimos anos sobre a saída de Che de Cuba em 1965 e até sua morte em 1967, que consultei para minha biografia de Che, foi escrita por Latell, embora não a assinasse.

Latell está há 40 anos tentando entender (agora na Universidade de Miami) o que acontecia, acontece e acontecerá em Cuba. Diga-se de passagem, se os últimos sete governos dos EUA o tivessem considerado, talvez não se encontrassem hoje diante de um abismo em Cuba.

Latell combina em seu livro, assim como em seus trabalhos classificados, o recurso - às vezes superficial, às vezes penetrante - de perfis psicológicos com um conhecimento detalhado das biografias dos irmãos Castro e da história de Cuba.

Ele chega a uma série de conclusões muito sugestivas sobre Raúl, que se comprovaram nos últimos meses conforme Fidel, segundo Latell, ia entregando as rédeas do poder a seu irmão a partir do declínio de sua saúde, há mais ou menos um ano.

O ex-analista da CIA descreve um Raúl que viveu na sombra do irmão, sob sua palmatória, tomado de um complexo de inferioridade, mas que pode, no dia que isso se alterar, mudar radicalmente também.

Em vez de ser Raúl o "terrível" - pela perseguição homofóbica, os julgamentos do general Arnaldo Ochoa e o coronel Antonio de la Guardia em 1989, a perseguição de dissidentes e a dissolução do Centro de Estudos da América - pode surgir Raúl o "compassivo": dos contatos com as Forças Armadas Revolucionárias (FAR) com militares dos EUA, da eficiência econômica nas empresas do Exército, da atitude mais tolerante frente às opções de Cuba. Em poucas palavras, o reformador, ainda que nada democrático, do pós-fidelismo.

Apoiado na única instituição cubana que conta, as FAR, com uma disciplina pessoal lendária e uma formação intelectual mais sólida que a do irmão por ser comunista a sério desde os tempos de juventude, o Raúl depois de Fidel pode ser diferente do Raúl durante o tempo de Fidel.

Mas não exageremos: Raúl não vai ser Gorbachev, porque a democratização de Cuba implicaria sua autodestruição. Mas pode ser Andropov, se Latell ou Norberto Fuentes tiverem razão. Entretanto, se Fidel não estiver, de fato, nem doente, nem morto, mas tenha se afastado para supervisionar a sucessão de longe, em vida, então Raúl pode ser Michael Corleone com dom Corleone em vida. E esta sim seria uma mudança, menor que a necessária, mas maior que a esperada.

O que parece certo, em todo caso, é que a era de Fidel Castro chegou ao fim: fim biológico ou fim político. Se, como não se pode mais que desejar a qualquer pessoa, ele sobreviver à intervenção cirúrgica a que foi submetido, de qualquer maneira são pouquíssimos os observadores da cena política cubana que consideram factível seu retorno ao poder absoluto. E se fatalmente não sobreviver, nem falar.

A nova era que começa pode se caracterizar por vários atributos. Pode ser uma sucessão sem transição, como na China; pode ser uma transição econômica, social, internacional, mas não política nem em matéria de direitos humanos. Ou pode ser a paulatina, mas segura reincorporação de Cuba no concerto latino-americano, hoje um concerto democrático, respeitador dos direitos humanos, de crescimento econômico (os últimos quatro anos foram os melhores anos econômicos latino-americanos desde o início dos anos 80), e de convivência no âmbito internacional com as demais nações.

A pedra-de-toque, como teria dito o velho Lenin, vai ser, sem dúvida, o tema das eleições. Parece inevitável, a essa altura, que a comunidade internacional insista em que qualquer transição em Cuba deva ao menos desembocar em eleições livres, eqüitativas e competitivas para resolver a questão do poder. Digo desembocar porque poderia não começar por isso, mas tem de terminar nisso.

E, por outro ladoparece lógico que mesmo os prognósticos mais positivos sobre o caráter reformador de Raúl Castro dificilmente contemplem a possibilidade de que ele próprio convoque eleições verdadeiras em Cuba, que, muito provavelmente, ele e seu partido perderiam.

Como enquadrar o círculo, como ajudar Cuba a transitar enfim para o século 21 sem sacrificar princípios que se tornaram fundamentais para a imensa maioria dos latino-americanos como a democracia representativa, o respeito aos direitos humanos, as liberdades fundamentais e à convivência internacional? Como evitar o derramamento de sangue e, ao mesmo tempo, conseguir o avanço democrático? Como evitar que a sociedade cubana se esfacele sem que isso implique hipotecar ou abandonar princípios fundamentais?

No fundo, este é o verdadeiro desafio para Raúl Castro, para Cuba, e, sem dúvida, para a América Latina e os EUA, que nunca estiveram ausentes das lutas internas cubanas e não estarão nesta nova conjuntura. TRADUÇÃO DE CELSO M. PACIORNIK

*Jorge G. Castañeda foi secretário de Relações Exteriores do México de 2000 a 2003. É atualmente professor de estudos latino-americanos na Universidade de Nova York. Foi professor no Instituto Carnegie da Paz Internacional em Washington, e nas universidades Princeton e da Califórnia, em Berkeley. É autor ou co-autor de oito livros, entre eles 'Che Guevara - A Vida em Vermelho' e 'A Utopia Desarmada'. Escreveu este artigo para 'The New York Times '