Título: Curdistão é alerta para o Iraque
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/09/2006, Internacional, p. A20

A mãe do policial curdo morreu em 1988, esmagada por uma rocha quando fugia para o Irã, depois que seu vilarejo sofreu um bombardeio aéreo. Seu irmão mais velho foi morto antes, combatendo as tropas de Saddam Hussein.

"Mas eu não odeio só Saddam", disse o policial, o tenente Ismail Ibrahim Said, de 29 anos, na emissora de rádio da cidade montanhosa de Qaradagh há duas semanas, antes de começar o julgamento de Saddam, acusado de genocídio contra a minoria curda. "É o caso também do novo governo do Iraque. Quando eles têm poder, nos oprimem da mesma forma que fez Saddam."

Esse sentimento, amplamente compartilhado na pátria autônoma curda, reflete uma falta de vontade entre muitos iraquianos de formar uma nação unificada e pode ser o prenúncio de uma divisão do Iraque em três regiões autônomas. À medida que o Iraque se contorce nas garras da violência entre sunitas e xiitas, uma partilha já está ocorrendo de fato. Algumas partes do país se assemelham cada vez mais ao Curdistão - e regiões armadas, homogêneas, já estão se tornando regra geral no Iraque.

Mas, se o Curdistão é cada vez mais uma indicação de como será o formato futuro do Iraque, ele também sinaliza os riscos que uma ruptura deste país pode acarretar. Autoridades iraquianas e dos Estados Unidos concordam que o perigo maior para um Iraque politicamente dividido, ou despedaçado pela guerra civil, é o de uma intervenção hostil por parte de países vizinhos. A conflagração regional que resultaria disso poderia refazer o Oriente Médio por meio de um banho de sangue em massa.

No Curdistão, a ingerência de países vizinhos já vem ocorrendo mais abertamente do que em outros lugares do Iraque. Há mais de duas semanas e durante vários dias, o Irã disparou obuses contra áreas em torno da Montanha Qandil, na remota região do norte do Curdistão iraquiano, matando pelo menos dois civis, ferindo quatro e obrigando dezenas de pessoas a fugir da área, de acordo com um conhecido político local, Mustafa Sayed Qadir. O Irã tem bombardeado a área esporadicamente há meses, acrescentou ele.

A Montanha Qandil é base de grupos militantes que lutam pela independência ou autonomia curda na Turquia e no Irã.

Assim como o Irã, a Turquia também aumentou sua pressão contra os curdos que lutam pela autonomia. No mês passado, o primeiro-ministro turco, Recep Tayyp Erdogan, advertiu o vice-presidente iraquiano Tariq al-Hashemi, um árabe sunita, de que o governo iraquiano precisava adotar "medidas satisfatórias" contra o Partido dos Trabalhadores do Curdistão, um grupo de guerrilha que mantém esconderijos nesta região. As autoridades turcas também advertiram as do Curdistão iraquiano contra uma tomada de controle da cidade petrolífera de Kirkuk.

Oficialmente, os principais políticos curdos no Iraque não fazem pressão para um Curdistão independente. Eles também estão conscientes de que uma nação curda será bastante hostilizada pela Turquia, Irã e Síria, todos estes países com minorias curdas ansiosas para içar suas próprias bandeiras. Os curdos destes países e os do Iraque há muito tempo sonham com uma união para formar o "Grande Curdistão", que abrangeria cerca de 30 milhões de pessoas e se estenderia do Mar Negro até o Mediterrâneo e sul do Iraque.

"Tanto a Turquia como o Irã estão descontentes com o que vem ocorrendo no Curdistão iraquiano - que é uma região especial, tem governo e Parlamento próprios, e assim por diante", disse Mahmoud Othman, um destacado membro curdo do Parlamento iraquiano. "Essa é a razão pela qual realizam essas operações especiais, esses bombardeios. É um ataque contra o governo curdo no Curdistão", acrescentou. "Temos de ser cuidadosos - e somos muito cuidadosos."

Esse tipo de incidentes através das fronteiras no Curdistão pode se espalhar pelo Iraque caso o país se fragmente. Alguns líderes xiitas estão empenhados na criação de uma região xiita autônoma de nove províncias no sul do país, que abrangeria os campos de petróleo em torno de Basra. Se isso acontecer no contexto de uma guerra civil em larga escala, a Arábia Saudita e a Síria, países com maiorias árabes sunitas, podem patrocinar abertamente as milícias sunitas no Iraque contra o feudo xiita apoiado pelo Irã.

No entanto, quer os vizinhos do Iraque gostem ou não, as regiões deste país estão se encaminhando no sentido de uma maior autonomia, e não o contrário.

O Curdistão iraquiano é praticamente independente do governo nacional desde 1991, quando as forças militares dos Estados Unidos criaram uma zona de exclusão aérea sobre a região. A derrubada de Saddam Hussein, em 2003, estimulou ainda mais os curdos no sentido de reforçar sua autonomia. Vendo isso, muitos xiitas do sul do Iraque começaram a exigir a mesma coisa.

O desfecho para o Iraque pode tornar-se sangrento. O país pode acabar dividido em três regiões com governos próprios, dominadas respectivamente por árabes xiitas, árabes sunitas e curdos. Os xiitas constituem cerca de 60% da população do Iraque; cada um dos outros dois grupos abrange 20%.

No Curdistão, as pessoas são francas quanto a sua relutância em participar do projeto de um grande Iraque. Em janeiro de 2005, 98% dos curdos votaram a favor da sua independência num referendo extra-oficial. Os curdos freqüentemente sublinham que a nacionalidade iraquiana é artificial, criada quando potências coloniais partilharam o Império Otomano após a 1ª Guerra Mundial, e questionam por que as pessoas deveriam ter agora um forte sentido de identidade iraquiana quando, na realidade, nunca o tiveram.

"O Iraque nunca foi um país unificado", disse Asos Hardi, editor-chefe do jornal independente curdo Awene. "Quando foi removido o único fator que mantinha este país unido, Saddam Hussein, todos os problemas emergiram."

Na praça do mercado de Sulaimaniya, principal cidade do leste do Curdistão, um professor afirma que a inimizade histórica entre árabes e curdos não desaparecerá tão cedo.

"Os curdos e os árabes são como vizinhos, mas os árabes sempre foram os ocupantes nesta terra", diz o professor Anwar Abu Bakr Muhammad, de 33 anos, conversando com amigos no fim da tarde. "Será muito melhor que nós nos separemos deles."

O ímpeto de independência se evidencia com um simples olhar ao redor da praça. Do lado de um prédio vê-se uma majestosa pintura do xeque Mahumou al-Hafid, que no início do século 20 lutou a favor de uma pátria curda. O centro da praça é dominado pelo busto de Piramerd, poeta famoso pelas suas obras sobre o nacionalismo curdo.

Por todo o Curdistão não se vê em nenhuma parte a bandeira iraquiana. Já a bandeira vermelha, branca e verde do Curdistão iraquiano tremula ao longo de ruas e nos prédios do governo.

Não se exige que as crianças estudem árabe nas escolas, o que significa que uma geração inteira está crescendo sem ter capacidade para se comunicar com outros iraquianos. Os árabes que chegam de outras áreas do Iraque precisam se registrar junto às forças de segurança locais. O governo regional curdo tem sua própria milícia, chamada peshmerga, com um número de membros estimado em mais de 100 mil. Essa milícia opera em postos de controle na divisa entre o Iraque curdo e o Iraque árabe.

JULGAMENTO DE SADDAM

Além disso, as desavenças entre árabes e curdos, em vez de diminuírem, podem acabar se ampliando com o julgamento de Saddam Hussein e de seis assessores pela brutal campanha militar contra os curdos em 1988, chamada de Anfal.

Sobreviventes que testemunharam no tribunal, no fim do mês passado, usaram um termo que recentemente entrou no vocabulário curdo para descrever o destino de parentes que foram presos pelas forças do governo de Saddam e nunca mais foram vistos: "anfalizados".

Essas lembranças de sofrimento podem ser um obstáculo para a unidade iraquiana, mas servem para reforçar as bases da nacionalidade curda.

"Os nacionalistas árabes nos consideram inferiores a eles", afirma Bahman Jabar,de 30 anos, outro professor na praça do mercado de Sulaimaniya. "Será melhor para nós que nos separemos dos árabes e tenhamos nosso Estado curdo."