Título: O segredo de Lula está na alma do povo
Autor: Andréa Barros e Mônica Manir
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/09/2006, Aliás, p. J4

Lula é o grande enigma da política brasileira. Não porque tenha um invencível carisma. Há várias evidências de que esse carisma declina, esvaziado pelas contradições da rede de apoio que o levou ao poder e pelo que o próprio poder faz ao carisma político. Seu carisma não foi suficiente para elegê-lo em três eleições anteriores àquela que o levou à Presidência da República. E o declínio desse carisma não será suficiente para privá-lo de um segundo mandato presidencial. Esse é o nó do enigma. Lula cresce no desgaste.

As pesquisas de opinião eleitoral das últimas semanas não deixam dúvida quanto ao fato de que é ele o favorito da maioria, em todas as categorias sociais. Há óbvias variações entre as classes sociais, as categorias de idade, de gênero, de escolaridade e de regiões. Mas Lula mais junta do que separa.

Seu governo mostra que nem ele mesmo compreende isso. Debocha dos intelectuais, proclama a superioridade política de sua própria insuficiente escolaridade. Orgulha-se da ignorância. No entanto, é o bem amado da intelectualidade que se acha e se proclama de esquerda.

É católico a seu modo, o que quer dizer que não é um católico "comme il faut". No entanto, é o mais abençoado político brasileiro pela hierarquia católica. E é também abençoado por setores até importantes das igrejas evangélicas. No âmbito das religiões mais reúne do que espalha. Isso é um milagre.

Proletário de origem, cresceu fazendo o discurso sindical menos conciliador, atacando os pelegos do trabalhismo getulista. No poder, praticamente nada conseguiu para a classe operária que representasse alguma diferença em relação a governos anteriores. Lula, no entanto, ainda é recebido no meio operário como o companheiro.

Lula foi nos tempos do sindicalismo um crítico temido do grande capital e do capitalismo. Mas é, provavelmente, o político brasileiro em quem o empresariado mais confia hoje: sabe que com ele tudo muda para permanecer na mesma. A classe média, que o renegava, mais por desprezo e nojo do operário que representava seu próprio passado recente, vê nele agora o monumento vivo da ascensão social. Ele simboliza aspirações naquilo que se tornou e vingança naquilo que diz.

Lula é a diversidade dessas contradições. Ele é um poço de imperfeições, que são as imperfeições de todos nós. Vence-as rindo, fazendo pouco caso da perfeição dos outros. Seu partido e seus aliados envolveram-se até a boca nas águas podres da corrupção para o projeto de permanecerem no poder, na cara nova e insustentável da ditadura do proletariado. Nem uma gota da lama espessa parece tê-lo atingido.

Lula permanece porque é inofensivo. Essa é sua grande qualidade. Todos sabem que com ele não há riscos nem políticos, nem econômicos, nem sociais. Lula permanece, também, porque não há um discurso novo no cenário político brasileiro. O PT não se realizou no poder. Ao contrário, afundou, perdeu-se de sua doutrina, dispensou seus cérebros, aniquilou seus éticos. Já o PSDB não encontrou o caminho da inovação. Não entendeu que ser sucedido por um governo do PT impunha uma revisão profunda de suas metas e de sua competência. Impunha a superação do PT mais do que a contestação do PT. Apresenta-se com a intenção de repetir-se, sem perceber que o governo Lula já é essa repetição. De certo modo, Heloisa Helena e o PSOL, e Buarque e o PDT, vão na mesma linha. Perderam-se no puritanismo da restauração sem ganharem na racionalidade da inovação.

O PSDB é, provavelmente, o único partido brasileiro que chegou a ter uma visão prospectiva da história e das possibilidades históricas do País. Chegou ao poder, com Fernando Henrique, porque teve essa competência no devido tempo. Entendeu que as velhas polarizações sociais fundadas na suposição da luta de classes haviam sido vencidas pela dispersão das classes e pelo poder de recriação e de reinvenção do capitalismo. Compreendeu que a inovação social e política se determina pelo poder de reprodução da sociedade contemporânea. Lula e os sindicalistas também têm uma certa percepção desse fato histórico. Mas percebem que o discurso radical inócuo ainda produz votos, com a vantagem de que agora já não é preciso levá-lo a sério. Sempre haverá um bode expiatório para exorcizar o fracasso e a incompetência. Sabem qual é a diferença entre fato e versão.

É esse cenário que dá vida a Lula. Ele e os outros principais candidatos à Presidência fazem o mesmo discurso, lutam pela mesma causa. Só se diferenciam na maledicência, nas acusações. Nessa perspectiva não há por que substituir Lula. Seria trocar o mesmo pelo igual. As diferentes categorias sociais da sociedade brasileira estão anestesiadas pela falta de alternativa, pela generalidade da crise social. O eleitorado de descrentes tornou-se um decisivo eleitorado insensível, que perdeu o sentido da indignação. Foi derrotado pelos políticos.

Lula foi hábil. Usou com plena consciência o fato de que não foi eleito pelo PT. Foi, sim, o grande eleitor do PT, o que tornou o PT um partido eleitoralmente descartável. Manteve prudente distância em relação ao seu próprio partido e a todos os focos de problemas que pudessem contaminá-lo pessoalmente. Deixou-se construir como figura pública, pôs-se lealmente a serviço de causas entre si contraditórias como a mística católica da Igreja "soi-disant" encarnada e o materialismo leninista, "soi-disant" revolucionário. Lula tornou-se politicamente necessário para costurar os radicalismos dispersos e residuais dos órfãos políticos do Brasil. Esse é o principal elemento do seu carisma, ainda forte apesar da fadiga dos materiais dessa construção.

Mas, sobretudo, ao imputar carisma a alguém, o brasileiro o perdoa antecipadamente de todos os pecados e erros. Lula orgulha-se de compreender a alma do brasileiro. Ele sabe, porém, que essa é uma alma dividida. Atribui ao ungido todas as bondades e quando ele peca, não é ele: é o maligno que o tenta, para dele se apossar. Essa cultura é o escudo de Lula e seu segredo.