Título: Os canhões de agosto
Autor: Richard Holbrooke
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/08/2006, Internacional, p. A16

Duas crises explosivas, no Líbano e Iraque, se confundem numa única emergência. Uma reação em cadeia poderá eclodir rapidamente e se espalhar para todos os lugares entre Cairo e Bombaim. A Turquia fala abertamente em invadir o norte do Iraque para resolver o problema dos terroristas curdos ali baseados. A Síria pode facilmente se envolver na guerra do sul do Líbano. Egito e Arábia Saudita são pressionados pelos defensores da jihad (guerra santa)a apoiar o Hezbollah, apesar de os governos do Cairo e Riad odiarem essa organização. O Afeganistão acusa o Paquistão de dar abrigo à Al-Qaeda e ao Taleban; os confrontos são constantes dos dois lados da fronteira entre os dois países. A própria guerra da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) no Afeganistão não está indo bem. A Índia ameaça o Paquistão com ações punitivas, porque acredita que ele esteja por trás dos atentados em Bombaim. O Usbequistão é uma ditadura repressiva com uma crescente resistência islâmica.

Os únicos beneficiados com esse caos são o Irã, o Hezbollah, a Al-Qaeda e o líder xiita iraquiano Moqtada al-Sadr, que no início do mês liderou a maior demonstração anti-Israel e antiamericana do mundo bem no coração de Bagdá, mesmo com uma força adicional de 6 mil soldados dos EUA seguindo para a a cidade para "evitar" uma guerra civil que já começou.

Essa combinação de elementos inflamáveis é a maior ameaça à estabilidade global desde a crise dos mísseis cubanos, em 1962, o único confronto de superpotências nucleares da história. A crise cubana, embora tremendamente perigosa, era comparativamente simples. Ela afetou dois líderes, mas sem nenhuma guerra. Em 13 dias, usando uma diplomacia brilhante, John F. Kennedy convenceu Nikita Kruchev a retirar os mísseis soviéticos de Cuba.

Kennedy foi profundamente influenciado pela obra clássica de Barbara Tuchman, Canhões de Agosto, que relatou como, há 92 anos, um evento aparentemente isolado - um assassinato cometido por um terrorista sérvio em Sarajevo - provocou uma reação em cadeia que, em poucas semanas, desencadeou a 1ª Guerra Mundial.

Há grandes diferenças entre aquele agosto e o atual. Mas Tuckman concluiu seu livro com uma frase que ressoa nesta época de crise: "As nações caíram numa armadilha, armadilha construída durante os primeiros 30 dias de batalhas que não conseguiram ser decisivas, e da qual não conseguiram, nem estão conseguindo, escapar." A maior prioridade da política americana deve ser evitar esse tipo de armadilha. Infelizmente há poucos indícios de que o presidente e seus mais importantes assessores reconheçam quão próximos estão de uma reação em cadeia, ou de que tenham alguma estratégia mais ampla além das ações táticas.

Com base na doutrina universalmente aceita da autodefesa, inserida no Artigo 51 da Constituição americana, não há dúvida de que Israel tem direito legítimo de agir contra um grupo que prometeu destruí-lo e que oculta 13 mil mísseis no sul do Líbano. Nestas circunstâncias, o apoio americano aos israelenses é essencial, como tem sido desde a época de Truman. Se Washington abandonar Jerusalém, a existência de fato do Estado judeu correrá perigo e a crise mundial, em cuja fase inicial estamos agora, rapidamente se deteriorará. Os EUA devem continuar deixando claro que estão prontos a partir em defesa de Israel, usando a diplomacia americana e, se necessário, equipamentos militares.

Mas o governo dos EUA precisa compreender também as conseqüências mais amplas de suas próprias ações e declarações públicas, responsáveis por um declínio sem precedentes da posição americana em grande parte do mundo e pelas novas e perigosas coalizões antiamericanas, estimulando uma nova geração de terroristas. O abandono, desde 2001, de uma diplomacia ativa no Oriente Médio aumentou a violência na região, com uma queda da influência dos EUA. Outros estão ávidos para preencher esse vazio. (É o caso da emergência repentina da França como protagonista-chave neste momento de grande atividade diplomática.)

Um efeito da política americana, não pretendido, mas inteiramente previsível, é o de fazer com que inimigos fiquem mais próximos. Por toda a região, sunitas e xiitas deixaram de lado o ódio que nutrem entre si, unindo-se e agitando os punhos - ou fazendo pior - contra EUA e Israel. Ao mesmo tempo, em Bagdá, nossos soldados são atacados dos dois lados - pelas milícias xiitas e pelos insurgentes sunitas. Se isso continuar , a presença americana na região não tem nenhum futuro.

O presidente George W. Bush tem o dever perante a nação, e especialmente perante os soldados que arriscam suas vidas diariamente, de rever sua política. Primeiro, deveria concentrar algumas tropas em áreas mais seguras no norte do Iraque, que serviriam como um bolsão de segurança entre os turcos cada vez mais agitados e os impacientes curdos que querem sua independência. Diante da nova situação, a concentração de forças nas áreas curdas e uma redução gradativa das tropas nas outras áreas - sem nenhuma decisão, ainda, quanto a uma retirada total das forças americanas do Iraque - estaria plenamente justificada. Ao mesmo tempo, os EUA deveriam enviar mais tropas para o Afeganistão, onde a situação tem se deteriorado enquanto o Pentágono está reduzindo o número de soldados - o que está sendo entendido como sinal de que o interesse dos EUA pelo Afeganistão diminuiu.

Na frente diplomática, os EUA não podem abandonar o campo para outros países (nem mesmo a França) ou para a ONU. Cada um dos secretários americanos de Estado, de Henry Kissinger a Warren Christopher e Madeleine Albright, negociou com a Síria, até mesmo ícones republicanos como George Schultz e James Baker. Então, por que esta administração não segue o exemplo, consultando previamente Israel a cada passo? Claramente, isso seria no interesse de Israel. Mas, pelo contrário, o governo se recusa a manter conversações diretas, afirmando publicamente que "a Síria sabe o que deve fazer", declaração que nega o próprio objetivo da diplomacia.

O mesmo vale para o caso de conversações com o Irã, embora neste caso elas sejam mais difíceis. Por que a mais importante nação do mundo se manteve afastada por mais de cinco anos, permitindo que o diálogo internacional com Teerã fosse conduzido por europeus, chineses e ONU? E por que esse diálogo ficou restrito ao problema nuclear, importantíssimo com certeza, mas não tão urgente neste momento em que o Irã patrocina e arma o Hezbollah e apóia ações contra as forças americanas no Iraque?

Conter a violência deve ser a principal prioridade americana. Encontrar uma solução segura e estável que proteja Israel deve vir em seguida. Depois é preciso acabar com o emaranhado desastroso em que os EUA se envolveram no Iraque, e de um modo que não configure total humilhação e não cause uma agitação ainda pior. Tudo isso exige uma diplomacia prolongada e de alto nível - exatamente o que o governo americano tem evitado no Oriente Médio. Washington tem, ou pelo menos tinha, influência sobre os Estados árabes mais moderados. Deve usá-la novamente, mantendo consultas prévias com e em nome de Israel. E os EUA precisam estar prontos para problemas inesperados que servirão como teste para o país. Eles podem ocorrer na Turquia, Paquistão, Egito, Síria, Jordânia ou até na Somália, mas o fato é que eles surgirão. Sem uma estratégia nova e abrangente baseada em nossas necessidades mais prementes de segurança nacional, esta crise quase certamente piorará e se espalhará.