Título: O princípio do fim da ditadura cubana
Autor: Mario Vargas LLosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/08/2006, Internacional, p. A22

O segredo - traço decisivo de todas as ditaduras e, em especial, dos Estados totalitários comunistas - que cerca a crise que levou Fidel Castro a delegar, de maneira "provisória", seus poderes ao irmão Raúl, fez com que as conjecturas sobre seu estado de saúde - "segredo de Estado para não dar armas ao imperialismo", segundo um dos mais grotescos comunicados redigidos pelo próprio ditador - fossem disparadas em todas direções, proclamando-o já morto, vítima de um câncer abdominal que o aniquilará rapidamente, ou em perfeita saúde e protagonizando uma farsa para tomar o pulso do mecanismo de sucessão, da qual retornará em breve para retomar as rédeas do poder absoluto e penalizar os prestimosos e subordinados que não estiveram à altura do que deles se esperava.

Em vez de continuar fabulando a respeito da doença que aflige o longevo tirano, da qual sem dúvida ninguém, salvo um grupelho insignificante de íntimos, sabe nada, convém tirar algumas conclusões a partir de certas evidências que a crise atual confirmou de maneira cabal. A primeira é que, enquanto Fidel Castro conservar um sopro de vida, nada avançará na ilha no sentido da democratização. Os que esperavam - no exílio em Miami, principalmente - que, com o anúncio de sua operação e conseguinte delegação de poderes, o povo cubano se lançasse às ruas entusiasmado com a iminência de sua libertação, ficaram a ver navios.

Quase meio século de arregimentação, doutrinação, tutela, censura e medo adormecem o espírito crítico, e até a mais elementar aspiração de liberdade de um povo que, por três gerações, não conhece outra verdade além das mentiras da propaganda oficial, nem parece mais ter outros ideais além dos mínimos da sobrevivência cotidiana ou a fuga desesperada para as praias do inferno capitalista.

Penoso e triste espetáculo, na verdade, o dessas massas encilhadas a aclamar o ditador octogenário morto ou moribundo, que, mal se afastam seus encilhadores, correm a telefonar para seus parentes no exílio para averiguar se lá se sabe se o homem morreu enfim, e depois saem, convertidas em turbas revolucionárias para apedrejar e assustar os dissidentes que, uma vez mais, pagam pelos pratos quebrados de uma crise encenada nas alturas longínquas do poder, na qual não tiveram a menor interferência.

É verdade que, uma vez desaparecido o superego que agora as castra e anula, essas massas sairão em breve às ruas, como na Polônia ou na Romênia, para aclamar a democracia, mas o certo é que quando esta chegar elas terão feito tão pouco para alcançá-la como os dominicanos para a morte do generalíssimo Trujillo ou os russos para a desintegração do império soviético. Cuba será livre, certamente, mais cedo ou mais tarde - esta é outra certeza indiscutível -, mas não pela pressão de um povo sedento de liberdade, nem pelo heroísmo de alguns grupos de cidadãos idealistas e temerários, mas por obra de fatores tão pouco ideológicos como uma hemorragia intestinal ou uma proliferação incontível de glóbulos vermelhos no ventre do Companheiro-Chefe.

As ditaduras de direita não são tão eficientes quanto as de esquerda para aniquilar o espírito de resistência e a aspiração libertária em um povo. Franco e Pinochet foram brutais e se valeram da censura e do terror para esmagar toda forma de dissidência. Mas nunca conseguiram embotar a imensa maioria da sociedade a ponto de submetê-la dessa maneira tão lastimosa e tão indigna como em Cuba ou na Coréia do Norte, onde parece ter se materializado o pesadelo orwelliano da dominação não só da conduta pública, mas também das consciências, e até dos sonhos dos cidadãos.

Isso em nada desmerece a coragem dos dissidentes que apodrecem nos cárceres ou vivem submetidos à vexação e ao vitupério cotidianos, mas antes a realça e mostra o quanto é admirável. No entanto, mesmo assim, destaca a orfandade em que se encontram e o escasso eco que todo esse investimento de idealismo e decência encontra em massas nas quais o aferrolhamento ideológico e a carência de cidadania parecem ter reduzido todas as aspirações cívicas a apenas duas: comer a cada dia e fugir se for possível.

O PROBLEMA DOS EUA

Por isso está cheio de involuntária comicidade o manifesto dos Prêmios Nobel e amigos intelectuais da ditadura castrista pedindo que os EUA não se aproveitem da doença do Chefe Máximo para atropelar a soberania cubana e invadir o país. Bastam dois dedos de testa para saber que o problema número 1 que os EUA têm atualmente com Cuba não é o de que Fidel Castro morra e a democracia chegue enfim à ilha, mas o de que se tal coisa ocorrer - ou mesmo se não ocorrer, mas houver uma abertura mínima por parte do regime -, isso não provoque uma emigração maciça de centenas de milhares ou até milhões para os EUA.

A tristíssima e paradoxal verdade é que a democratização de Cuba, no atual momento, significaria apenas uma monumental dor de cabeça para os EUA: brigar com essa maré indistinta de cubanos de todas as condições aos quais meio século de totalitarismo não deixou outra ambição além de fugir para o país do norte, e ter de carregar nos ombros a monumental tarefa de ajudar a ressuscitar uma economia que 50 anos de centralismo, estatismo e dirigismo colocaram em estado de dissolução. Ao contrário das declarações grandiloqüentes de Bush, a administração americana tem muito pouco interesse, nestes momentos em que não sabe como sair dos atoleiros do Iraque e Líbano, em uma nova dor de cabeça e nos problemas gigantescos de imigração e orçamento de um país situado a poucos quilômetros de suas praias. Não é apenas o pequeno círculo de oligarcas comunistas que cerca Fidel Castro que acende velas nestes dias às virgens e santos do céu marxista para que sua vida se prolongue; Bush e companhia também.

Mas nada disso impedirá que Fidel Castro morra e que com sua morte se coloque em marcha o processo de transformação de um regime que jamais poderia se manter sem a presença de quem o moldou dos pés à cabeça, imprimiu sua marca em todas suas instituições e detalhes e é seu motor, seu cimento e sua pedra de fecho, aquela pedra que, segundo as superstições medievais, bastava que fosse retirada para a catedral inteira desmoronar. É muito possível que esse processo já tenha começado com a delegação de poderes a Raúl Castro. Mas ele só se precipitará com o desaparecimento de Fidel.

Conseguirá Raúl Castro impor em Cuba o modelo chinês de uma economia capitalista sob um governo comunista do qual, segundo rumores, seria adepto? Não é nada fácil. Diferentemente da China, uma abertura econômica tão radical teria em Cuba efeitos políticos imediatos e provocaria uma agitação social atiçada de Miami que dificultaria ou paralisaria os investimentos indispensáveis para assegurar o crescimento econômico e a criação de empregos. É uma ilusão imaginar que o modelo chinês poderia funcionar com um formato liliputiano.

Outra possibilidade é o estabelecimento de uma ditadura militar de corte clássico, que, prescindindo de álibis ideológicos, busque uma acomodação com os Estados Unidos, prometa evitar as migrações em massa para o norte e, para manter as aparências, organize eleições "democráticas" de maneira ritual, como as que o Partido Revolucionário Institucional (PRI) organizava no México durante seu reinado de 70 anos. Não se pode esquecer que as Forças Armadas são a instituição mais poderosa de Cuba, e donas de um verdadeiro império econômico, ao que os privilegiados membros da nomenclatura militar dificilmente renunciarão de bom grado. Esta é, para mim, a pior desgraça que poderia sobrevir ao desditoso povo cubano: passar de uma ditadura comunista a uma ditadura perfeita, capitalista e priísta.

A democratização, quando vier, adotará, quem sabe, uma trajetória sinuosa, confusa, pouco heróica, e talvez ocorra a dolorosa circunstância de que os que a propiciem e administrem não sejam o punhado de resistentes com credenciais limpas e generosas, mas, principalmente, os próprios cães da ditadura, esses filhos da revolução que, com seus trajes bem ajustados e aparência de executivos, rivalizam agora em servilismo e abjeção ao redor da cama de Fidel Castro. Não se pode acreditar neles: dizem o que dizem para não perder posições nem ceder cotas de poder a seus rivais. Mas é garantido que eles já começaram a preparar a substituição e a se sentir, no fundo de sua alma, cada vez menos comunistas, e cada vez mais modernos e mais realistas, isto é, social-democratas (a maneira politicamente correta de dizer capitalistas).

Não é impossível que alguns deles já conspirem e enviem sondagens, recados, ao inimigo, fazendo-o saber que, chegado o momento, terá de contar com eles, pois só eles são capazes de assegurar uma transição pacífica, ordenada, sem caos e ajustes de contas, amistosa e fraterna. E o pior de tudo é que não é impossível que tenham uma boa dose de razão e que, como ocorreu na Rússia, por exemplo, sejam eles os Vladimir Putins deste mundo, os que terminarão enterrando a ditadura castrista e herdando o poder.

Tomara que me engane, mas creio que Cuba ainda tem um longo caminho a percorrer até - como diria Borges - merecer a democracia.