Título: Cadeião social
Autor: José Renato Nalini
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/08/2006, Espaço Aberto, p. A2

A cada onda de violência que perturba a rotina, longe de ser pacífica, voltam as sugestões de construção de mais presídios, enrijecimento das penas, supressão de benefícios aos encarcerados, redução da maioridade penal. A sociedade parece perplexa ante os atentados e invoca o uso de mais força e de mais autoridade. Reconhece a ineficiência dos instrumentos tradicionais de preservação da ordem. A lei continua a ser lei, mas parece não revestir mais legitimidade.

Compreende-se o desprestígio da lei contemporânea, hoje tão distante do ideal de assegurar o bem comum. O Legislativo já foi o mais importante dentre os Poderes, na clássica tripartição. Afinal, a ele incumbiria a formulação das regras do jogo. Primazia de relevo, pois o Estado de Direito passou a ser confundido com o Estado sob a lei.

Só que a lei deixou de significar a relação necessária extraível da natureza das coisas. Nem sempre reflete o interesse coletivo. O moderno Parlamento, sitiado por interesses de forças emergentes, vê debilitar-se a condição de caixa de ressonância das aspirações populares. Cada eleito procura satisfazer as expectativas do setor a que deve a eleição. O atendimento localizado, pontual, tópico, de cada um desses grupos nem sempre coincide com as necessidades do bem comum. O resultado de situação tal é que a lei contemporânea passa a constituir a resposta direcionada a resolver uma questão muito particular. Apenas remotamente guarda relação com o interesse coletivo. Não raro, preenche as aspirações de uma fração minoritária da sociedade. Já não pode ser chamada expressão da vontade geral.

Não é só. Para se converter em lei formal, além de atender ao processo legislativo, de trâmite pormenorizado na Constituição da República e nos regimentos internos das duas Casas elaboradoras, precisa fazer concessões. Interesses antagônicos obrigam à prática da transigência. O texto afinal aprovado é o fruto do compromisso obtido no consenso possível entre as facções.

Esse texto imposto à obrigatória observância de todos guarda imprecisões. Abriga ambigüidades. A redação a que se chega depois de discussões e recuos é freqüentemente fluida. Necessita de uma consistente interpretação. Já não vigora, no Estado moderno, a máxima in claris cessat interpretatio. Ou seja, não existem, nos dias de hoje, leis insuscetíveis de interpretação. A hermenêutica passa a ser ferramenta imprescindível e de crescente influência para que se possa acreditar na preservação do Estado de Direito.

O fenômeno conduz a outras deformações da democracia. A complexidade na interpretação dos fenômenos sociais e a primazia conferida aos verdadeiros donos dos votos fazem com que o Parlamento decline de legislar. Prefere exercitar a fiscalização, também função ínsita às suas atribuições, e com isso invade parcela considerável das atribuições judiciárias.

O Executivo, para resolver as questões urgentes da administração, invade a seara parlamentar e normatiza muito mais do que o Parlamento. A inundação das medidas provisórias é uma constatação inquestionável.

Ao Judiciário resta se apropriar de uma parcela da administração. Chamado a aplicar uma lei imprecisa, fluida e ambígua, ele vai supri-la de acordo com regras hermenêuticas imunes a um efetivo controle. A Justiça é plural e de cada candidato a juiz apenas se exige a capacidade de memorizar lei, doutrina e jurisprudência.

Para fazer incidir na realidade concreta a vontade difusa da lei, cada juiz dispõe de inumeráveis métodos, todos eles legítimos, todos defensáveis, mas propiciadores de conseqüências as mais díspares.

O panorama é de perplexidade. O Legislativo, envolto na dissipação dos costumes, perde legitimidade para exigir o antigo respeito à lei. Desvendada a fórmula pela qual se legisla, fica difícil demonstrar que o fruto de seu trabalho corresponda aos mais puros anseios da comunidade a que deve servir. Acusa o governo de se apoderar de sua função mais típica e o Judiciário de subverter a exata vontade da lei.

O Executivo critica o Legislativo por ineficiência e o Judiciário por exercer o governo e fazer opções em seu lugar. O juiz administra com as liminares que paralisam obras ou licitações ou com antecipações de tutela que procuram corrigir a intolerável lentidão da Justiça.

O Judiciário considera-se vítima dos dois outros Poderes. Vê-se obrigado a aplicar leis cada vez mais imperfeitas e está subordinado aos humores do "dono do caixa", que lhe destina verbas orçamentárias cada vez mais reduzidas. Ao menos segundo os parâmetros do próprio Judiciário.

E a sociedade, o que a ela estará reservado?

Ao assistir ao espetáculo da violência, da exclusão, do desemprego, da performance pífia da educação, da devastação do que resta de verde, da contaminação dos aqüíferos, dos escândalos retumbantemente anunciados e discretamente esquecidos, qual o sentimento que pode acometê-la?

Tem todo o direito de se sentir refém de uma anomalia política não imaginada pelos formuladores da teoria da separação de Poderes. Anomalia que transtorna a vida social e cujo destino é imprevisível.

Seria crível a ilusão de que novas leis resolveriam de imediato o impasse entre aparelhamento estatal insuficiente e delinqüência ousada? Bastarão novos presídios para conter a manifestação de violência de jovens cada dia mais rebeldes e insubmissos?

Há mais de um século, o francês Jean Cruet já escrevia sobre A Vida do Direito e a Inutilidade das Leis. Antes de se produzirem mais leis, há que recompor o papel e a legitimidade dos Poderes. A questão é muito mais grave do que oferecer velhas respostas legais para sintomas terminais.

Antes de novos presídios tradicionais, há que permitir à sociedade liberar-se dos entraves que a mantêm num verdadeiro "cadeião social", pois algemada, pelo sistema, de experimentar a verdadeira democracia participativa.