Título: A última trincheira
Autor: Ives Gandra da Silva Martins
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/08/2006, Espaço Aberto, p. A2

A absoluta desmoralização do Congresso Nacional, após perdoar uma legião de "mensaleiros" e "usuários de caixa 2", segundo o definido pelo Conselho de Ética da Câmara dos Deputados, está a demonstrar que os hábitos políticos do Brasil, aceitos pelo presidente Lula como "costumeiros", estão a merecer completo reexame.

O sério trabalho que o procurador-geral da República, dr. Antonio Fernando Barros e Silva de Souza, está realizando, ao detectar mais de uma centena de beneficiários ilegais do dinheiro público, assim como a severa e correta presidência do Tribunal Superior Eleitoral pelo ministro Marco Aurélio Mello representam um fio de esperança que deverá, entretanto, ser necessariamente fortalecido pelos eleitores brasileiros, se desejarem uma real democracia no País, e não uma partilha da coisa pública entre os detentores do poder.

É interessante notar como as sucessivas CPIs apenas alargaram o fosso da sordidez política, a ponto de o deputado Antonio Carlos Biscaia (PT-RJ) reconhecer que todo o Parlamento está sob suspeita.

Por outro lado, o pivô da crise mensaleira ostenta sua fantástica influência no governo e no Parlamento, sendo visto em contatos permanentes com lideranças nacionais e internacionais. O próprio partido do presidente, depois de constatar a participação de seus membros em ações mais graves que as do governo Collor, admite a candidatura deles e pretende apurá-las apenas "depois das eleições"! Em outras palavras, nem o presidente da República nem o partido do presidente desejam aprofundar o exame daquilo que a mídia denunciou como o maior escândalo de corrupção, peculato, assalto ao dinheiro público da história democrática brasileira.

Estou convencido de que a corrupção é inerente ao homem, no poder. Quem deseja o poder pretende muito mais exercê-lo em benefício próprio do que servir ao povo. São raros os políticos com visão de estadista. No Brasil, todavia, a verdade é que tal deterioração chegou ao máximo e, lamentavelmente, sob a Presidência de um homem e de um partido que, nada obstante minha divergência ideológica profunda, sempre considerei símbolos de ética.

O certo é que o atual mandato do presidente Lula está decididamente tisnado. A apropriação de recursos públicos, por intermédio da longa manus da publicidade, levou o Ministério Público a detectar a prática dos mais variados crimes contra o erário. Jamais antes um governo teve, coletivamente, seus principais assessores e dirigentes denunciados por tantos possíveis crimes no Supremo Tribunal Federal (STF). Nas duas denúncias apresentadas, mais de uma centena de áulicos governamentais são acusados.

É, neste quadro de desolação para o eleitorado brasileiro - e, principalmente, para mim, que sou parlamentarista desde os bancos acadêmicos - há de se realçar, pelo menos, que, enquanto os Poderes políticos da democracia brasileira naufragam, o Poder técnico, por excelência, vem lutando a duras penas para preservar as instituições. Falo do Poder Judiciário.

Estou convencido de que é a Suprema Corte a última trincheira da democracia brasileira, o último esteio de preservação das instituições, a última barricada para que a ordem seja mantida, a última fortaleza de proteção dos direitos individuais. Tem falhas, mas não semelhantes àquelas em que a ética é pisoteada, como ostentam os dois Poderes políticos. Lembro que, certa vez, o Senado instalou CPI para apurar a corrupção no Judiciário e, depois de intenso trabalho, acusou um magistrado e derrubou três senadores!

Os problemas do Judiciário, afogado com o excesso de recursos processuais e de instâncias, além de escassez de recursos materiais e de magistrados, decorrem, ainda, de um texto constitucional extremamente prolixo (344 artigos e 58 emendas em 18 anos, ante os 7 artigos e 26 emendas na Constituição americana, com seus 219 anos de vida) e suscetível de permanentes modificações. Basta lembrar que, no momento, tramitam no Parlamento brasileiro nada menos que 1.600 projetos de emenda constitucional para apreciação!

Estive ministrando palestras na Universidade de Coimbra, na segunda semana de julho, e visitando a Universidade Harvard, na quarta semana desse mês, e os constitucionalistas de Cambridge e Coimbra (Canotilho, Vital Moreira, Moura Ramos, Dwight Duncan) não entendem como os tribunais superiores, no Brasil, podem receber e decidir mais de 100 mil processos/ano. Nem eles nem nós. Talvez em razão da excessiva carga de trabalho, é compreensível que ainda não haja uma doutrina definitiva da Suprema Corte sobre muitos institutos fundamentais. É que a Carta da República, ao lado de hospedar princípios constitucionais, constitucionalizou matérias que poderiam ser objeto de lei complementar, lei ordinária, decretos, resoluções administrativas e outras espécies de atos normativos. Nada obstante a insegurança jurídica ainda existente após a promulgação da Constituição de 1988 - que os Poderes políticos labutam, magistralmente, por alargar -, o Poder Judiciário tem-se comportado como defensor da cidadania e das instituições, corrigindo, não poucas vezes, os fantásticos erros do Legislativo e do Executivo.

Apesar das falhas inerentes ao ser humano, é o Poder Judiciário, de rigor, a última trincheira de um país assolado por escândalos políticos, cabendo à Suprema Corte, constituída de 11 dignos e competentes magistrados, não permitir que a tolerância dos violadores da lei abale o alicerce da ainda jovem democracia brasileira.