Título: A remoção do entulho A democracia não tem tecnologia disponível para processar punições em tempo recorde
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/08/2006, Nacional, p. A6

A CPI dos Sanguessugas desobstruiu parte do caminho em direção à recuperação da credibilidade do Congresso ao expor com rapidez, precisão e objetividade um grupo grande de parlamentares suspeitos de usar o mandato em causa própria, mas falta ainda uma parte importante do serviço: a remoção do entulho acumulado às margens da estrada.

Falamos, evidentemente, dos 72 deputados e senadores cujos nomes serão remetidos aos respectivos Conselhos de Ética para exame sobre abertura de processo para cassação de mandatos. O presidente do conselho da Câmara - que é onde a coisa complica, pois no Senado são apenas três os implicados -, Ricardo Izar, acha que boa parte renuncia antes do fim da legislatura e outra parte desiste de concorrer a novo mandato.

É também a opinião da CPI. Portanto, Izar e companhia não falam de impressões, têm informações a respeito que devem ter sido transmitidas a eles pelos próprios personagens, louve-se, afinal, com vergonha da situação. Isso reduz, ainda não se sabe para quanto, o número de processos.

Mas, para raciocinar, tomemos o universo de 69 deputados. Na democracia não há tecnologia disponível para processar essa demanda em tempo recorde. Na ditadura não há problema, é decisão autocrática.

Mas, de acordo com os trâmites previstos, cada integrante do Conselho de Ética só pode examinar um processo de cada vez. Sendo 15 titulares, tirando o presidente, 14. Daria algo como 5 processos para cada um.

E nessa fase há o contraditório, contagem de sessões e prazos que, mesmo reduzidos como se propõe, não poderão enveredar pelo perigoso terreno do rito sumário. De mais a mais, há o plenário e o voto secreto.

Se cada um dos 69 puder contar com a colaboração de uns poucos amigos protegidos da opinião pública pelo sigilo, temos como conclusão óbvia a forte probabilidade da repetição das absolvições, mais não seja por falta de quórum.

Isto posto, a fim de evitar frustrações e anular o bom efeito da CPI, muito mais negócio para a imagem do Congresso é deixar os processos para serem resolvidos na próxima legislatura, livre da presença dos renunciantes, dos desistentes e daqueles rifados pelas urnas.

As vantagens do, digamos assim, adiamento estratégico, são evidentes: a redução do número de processados facilita a punição, o colegiado estará interessado em agir com correção para poder trabalhar com um mínimo de paz e credibilidade, os candidatos a presidente da Câmara - a ser escolhido em fevereiro - terão de incluir a lisura em suas agendas de campanha e o eleito presidente da República precisará de um Congresso mais limpo se não quiser padecer em breve tempo da mesma infecção.

Retrato fiel

Irretocáveis os entrevistadores do Jornal Nacional. Conseguiram fazer ao presidente da República as perguntas relativas ao universo de problemas enfrentados por ele - a corrupção de costumes em seu governo e partido - sem agressividade nem impertinências desnecessárias. Não caíram, pois, na armadilha de tentar igualar o tom usado com Alckmin - bem mais incisivo - só para simular independência.

Marcaram esse atributo abordando os temas pertinentes à realidade do candidato à reeleição que, por si só, já eram suficientemente constrangedores. Roubalheira não é assunto fácil em conversa alguma, ainda mais no ambiente da residência oficial e em se tratando de um presidente e todo o ritual institucional que cerca o cargo.

Já o presidente Luiz Inácio da Silva, no papel de candidato saiu-se como pôde, com as tergiversações de sempre e em acordo ao que lhe foi indicado por seus assessores de comunicação e propaganda.

Ninguém poderia esperar que Lula fizesse como candidato em disputa por mais um mandato o que não fez como presidente: uma afirmação contundente de repúdio aos companheiros malfeitores e autocrítica por ter se cercado de gente não confiável.

Os assessores ensinaram ao presidente que deveria assumir "total responsabilidade" sobre os erros cometidos por "qualquer funcionário" do governo. Mas não lhe disseram que ao continuar dizendo que nunca soube nem poderia saber de nada do que era feito por gente com quem mantinha relações políticas há 30 anos, a alegada "responsabilidade" não soaria convincente. E, de fato, não soou.

Como presidente, e ali só o fato de a entrevista ser realizada no Palácio da Alvorada impunha a evidência dessa condição, faltou compromisso com o posto. Tentou falsear a história - ou assumiu que antes falseou -, dizendo ter demitido subordinados a quem na época homenageou com a demissão "a pedido" (Waldomiro Diniz incluído) e mostrou não conhecer seu país ao errar dados simples como a extensão das fronteiras brasileiras.

Não houve revelações e sim confirmações.

Para usar expressão cara ao presidente, sejamos francos: se ele não sabe o tamanho do país que governa nem o que se passa na Casa Civil e no Ministério da Fazenda, o que sabe mesmo o presidente?