Título: Islã cristianizado
Autor: Mateus Soares de Azevedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/10/2006, Espaço Aberto, p. A2

Não se pode julgar com plena objetividade uma tradição com os critérios de outra. Além disso, Cristianismo e Islã têm estruturações internas com disposições bastante desiguais. No Islã, a esfera política está intrinsecamente integrada à esfera religiosa, ao passo que no Cristianismo, e no Catolicismo em particular, a política não está organicamente incorporada à religião, e tem sido vista, antes, como um acessório algo incômodo. Como diz o filósofo das religiões alemão Frithjof Schuon, 'o Islã possui essencialmente uma dimensão política que era estranha ao Cristianismo primitivo e que este último, mesmo quando se tornou religião de Estado, possuía apenas como um apêndice profano'.

Tais considerações não foram levadas em conta na recente polêmica inter-religiosa. Ao falar do Islã, o papa Bento XVI escolheu uma má citação. Envolveu a Igreja Católica numa controvérsia como não se via desde 1988, quando o arcebispo tradicionalista Marcel Lefebvre ordenou bispos à revelia da 'nova Igreja' que emergiu do Concílio Vaticano II. O atual pontífice poderia ter feito uma boa citação. De seu ilustre predecessor, por exemplo, Pio XII (papa entre 1939-1958), que disse: 'Alegro-me por saber que, em todo o mundo, milhões de pessoas cessam suas atividades mundanas cinco vezes ao dia para se voltarem para o Eterno.' Ele se referia aos seguidores do profeta Maomé.

O ponto crucial da controvérsia é que, no Islã, a política tem tradicionalmente grande relevância, ela vem praticamente junto da religião e está nela incluída. O Islã surgiu no deserto, em meio a tribos nômades e seminômades, entre homens cujas principais atividades eram o comércio e o pastoreio e cuja vida não estava inserida num quadro de pertença a um império constituído. Os primeiros muçulmanos foram, simultaneamente, os mensageiros de uma nova religião e os forjadores e organizadores de um novo império. Os sucessores imediatos de Maomé tinham necessariamente de levar uma espada ao lado do Corão, pois não contavam com a proteção da pax romana, como era o caso dos discípulos de Cristo. Eles tiveram de forjar uma nova e original pax islamica.

Comparemos tal realidade com o contexto cristão. Se os primeiros apóstolos, como Pedro e Paulo, por exemplo, puderam dispensar, em grande medida, as preocupações de caráter político, social e econômico em suas viagens missionárias, pois isso era atributo de 'César', os companheiros do Profeta não se podiam furtar a essas preocupações temporais.

Vê-se, assim, que religião e política caminham juntas no Islã, diferentemente do Cristianismo, cujo fundador mesmo ensina: 'Meu Reino não é deste mundo.' E também: 'Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus.' Ou seja, a mensagem original de Cristo é puramente espiritual, enquanto Maomé foi simultaneamente líder espiritual e político.

No Islã, a política é uma 'auxiliar' da religião, a qual lhe fornece seus princípios de ação, sua base e a 'moldura' no interior da qual a política como arte de bem servir à comunidade é exercida. O problema hoje é que a política quer sobrepor-se à religião, quer obrigá-la a seguir seus caminhos, quer colocar-se no seu lugar. É isso que vemos no ideário fundamentalista militante: a religião a serviço da ideologia, a política como 'religião'.

O fundamentalismo militante inverte a vinculação normal entre as duas esferas, de tal forma que o interesse imediato quer açambarcar a religião enquanto prática da sabedoria, da misericórdia e da virtude. Em suma, Islã tradicional e espiritual é sinônimo de política - necessariamente divisiva, pois as opiniões humanas são diversas - a serviço da 'verticalidade' e da transcendência. No fundamentalismo, ao contrário, o legado espiritual é forçado a prostrar-se a serviço de interesses imediatos e 'horizontais'. O ativismo constitui, assim, um empobrecimento da mensagem essencial da religião, nivelando por baixo cultura, teologia e mística.

O Islã também é apresentado como tendo se difundido unicamente pela força das armas. Esquece-se que a persuasão desempenhou um papel mais importante. Na África e no sul da Ásia, por exemplo, ele se estabeleceu pelo convencimento, mediante o exemplo de vida de fiéis comuns e, especialmente, de místicos sufis. Na Espanha e na Grécia, que viveram séculos sob domínio islâmico, as populações continuaram praticando o cristianismo, e não foram forçadas a se converter. Ou seja, os muçulmanos conquistaram militarmente muitos territórios, mas não converteram à força os 'povos do Livro' (cristãos e judeus, e também hindus). Ademais, não há civilização que tenha dispensado totalmente a 'espada', sempre que esteja em jogo a difusão de sua mensagem sobre um espaço considerado vital. O próprio Cristianismo não se furtou a fazer uso dela.

Além dessas considerações de ordem conceitual e histórica, que explicam as diferenças entre as duas grandes tradições mundiais e mostram o quanto está difundida uma visão 'cristianizada' do Islã, estranha-se a incompreensão acerca de uma tradição que tem papel protagonista no mundo contemporâneo. É paradoxal que papas da Igreja tradicional, como o citado Pio XII, tenham demonstrado um realismo e um universalismo ausentes entre os porta-vozes da nova e 'ecumênica' Igreja que emergiu do rompimento revolucionário com a tradição operado pelo Concílio Vaticano II.

Mateus Soares de Azevedo, jornalista e ensaísta, mestre em História das Religiões pela USP, é autor de A Inteligência da Fé - Cristianismo, Islã e Judaísmo (Record, 2006). E-mail: mateusaz@hotmail.com