Título: Como criar um banco tirando US$ 27 do bolso
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/10/2006, Internacional, p. A13

Mulheres viraram o alvo da instituição quando se comprovou que as famílias se beneficiavam mais de empréstimos para elas

Regina Cardeal

O ganhador do Prêmio Nobel da Paz, Muhamad Yunus, contou em entrevista à Agência Estado como deu início ao Banco Grameen tirando US$ 27 do próprio bolso para fazer o primeiro empréstimo. O economista, que revolucionou as finanças a partir do conceito do microcrédito, concedeu uma entrevista exclusiva no domingo, enviando as respostas de seu BlackBerry quando estava na Espanha, dois dias depois de visitar a Colômbia para uma série de palestras.

O Banco Grameen existe desde 1976. Com este tempo todo em atuação mudou seu conceito de microcrédito?

O Grameen cresceu muito nestes anos. Agora atende a 6,7 milhões de tomadores de empréstimo. Como sempre, o banco é de propriedade dos tomadores de crédito. O Grameen empresta mais de US$ 800 milhões a cada ano. Todo este dinheiro vem inteiramente dos depósitos bancários. Não pegamos crédito ou verba de doadores ou de instituições financeiras internacionais. Comecei o banco emprestando US$ 27 do meu próprio bolso. Então me tornei avalista de um banco comercial para obter dinheiro para emprestar aos pobres. A partir daí, tornei isto um projeto para o banco central e posteriormente aceitei dinheiro de doadores. Desde 1995, o Banco Grameen parou de aceitar recursos de doadores ou dinheiro de fora. Conseguimos nosso próprio dinheiro com a captação de depósitos.

O Banco Grameen começou dando crédito sobretudo para as mulheres. Hoje o banco também faz empréstimos aos homens?

Não. Mesmo hoje 96% de nossos empréstimos são para mulheres. Os homens podem pedir empréstimos por meio de suas mães e mulheres. Muitos fazem isso. Eu comecei emprestando tanto para homens quanto para mulheres, numa participação igualitária (50% para cada). Mais tarde, vendo que as famílias se beneficiavam mais se os empréstimos fossem dados às mulheres, começamos a manter o foco nelas. Logo, o número de mulheres superou os 90%.

Quais os principais resultados do microcrédito em Bangladesh?

O Banco Grameen contribuiu enormemente para aumentar o poder das mulheres em Bangladesh. Também contribui para reduzir a pobreza, que diminuiu 20 pontos porcentuais no país nos últimos 15 anos. Mais de 58% dos tomadores de crédito do Banco Grameen saíram da pobreza. A taxa de natalidade foi reduzida sensivelmente, a nutrição infantil entre as famílias ligadas ao Grameen melhorou, assim como a escolaridade, que cresceu quase 100%. A participação política entre os tomadores de crédito do Banco Grameen aumentou espetacularmente. Mais de 3 mil mulheres do Grameen foram eleitas para cadeiras em governos locais, de um total de 12 mil assentos no país.

O microcrédito é um conceito que poderia funcionar em qualquer país ou há razões econômicas, financeiras ou culturais que possam fazer com que funcione melhor num país do que em outro?

O microcrédito deveria funcionar igualmente bem em todos os países desde que as barreiras legais e administrativas estejam num mesmo nível. Mas estas barreiras diferem. Alguns países têm programas de bem-estar social que impõem restrições às operações de microcrédito. Em alguns países, as legislações bancárias são aplicadas tão estritamente que os programas de microcrédito não funcionam plenamente.

Num país como o Brasil, onde os pobres são vasta maioria da população, o microcrédito pode ajudar a reduzir a pobreza? E a melhorar a distribuição de renda?

Tenho certeza absoluta de que o microcrédito pode trazer enormes benefícios ao gerar renda para os pobres do Brasil, particularmente para as mulheres pobres. Melhorar a distribuição de renda é outro problema. Isto não pode ser garantido só pelo microcrédito. Muitas outras medidas políticas são necessárias. Mas a qualidade de vida dos pobres certamente será melhor com o microcrédito.

Quais experiências do Banco Grameen o sr. considera importante para serem aplicadas no Brasil?

Lamento não ter qualquer contato com o Brasil. A experiência do Banco Grameen de mobilizar a criatividade interna do pobre, garantindo educação para as crianças pobres e levando-as ao mais alto grau de educação, criando uma nova segunda geração na família, adotando fundos de pensão para os pobres, seguro saúde para os pobres, nova tecnologia para os pobres, tudo isto será muito benéfico para os pobres. Criar um banco exclusivo para o pobres, controlado pelos pobres, vai facilitar todas estas iniciativas.

Como o microcrédito está indo no mundo?

Nosso objetivo era levar o microcrédito para 100 milhões das famílias mais pobres em 2005. Atingimos este número. Mas, das 100 milhões de famílias, 85 milhões estão na Ásia, 10 milhões na África e apenas 5 milhões na América Latina. O alcance é desigual. É preciso acelerar o processo na América Latina. Ninguém deve ficar sem acesso aos serviços financeiros.

Como uma instituição de microcrédito pode fazer parte do mercado global? Ou elas se destinam a atuar apenas nos mercados domésticos? Por exemplo, uma banco de microcrédito como o Grameen pode emitir bônus ou obter empréstimos nos mercados internacionais?

O Grameen tem recursos próprios mais do que suficientes. Não precisamos captar dinheiro fora do país. O Banco Grameen é uma instituição financeira saudável. Como tal, não deve ter qualquer dificuldade para obter recursos nos mercados financeiros internacionais com a emissão de bônus ou outros instrumentos. Mas os bancos de microcrédito devem ter como objetivo a mobilização de depósitos nas áreas vizinhas às que atuam. Eles vão descobrir que se encontram num oceano de dinheiro. Buscar dinheiro nos mercados internacionais é uma orientação absolutamente errada para um banco de microcrédito.

Como o Banco Grameen seleciona as pessoas ou pequenas empresas às quais concede empréstimos? Há alguma forma de análise de risco de crédito? A inadimplência é um problema?

Nós fazemos negócios com todas (grifo dele) as pessoas pobres. Não projetamos nosso banco para excluir ninguém. Não desconfiamos de ninguém. Não fazemos nenhuma checagem de risco de crédito. Estas coisas são necessárias em sistemas que querem excluir algumas pessoas indesejadas. Desenhamos um sistema em que todos são bem-vindos. Todos são atendidos igualmente. Nossa taxa de adimplência é de 99%. Não temos problema de inadimplência.

Qual é, na média, o valor dos empréstimos feitos pelo Grameen?

O Grameen empresta mais de US$ 800 milhões por ano, como eu disse, e os empréstimos são, em média, de US$ 130.

Qual é a taxa de juros real cobrada nos empréstimos?

Se considerarmos uma taxa de inflação anual de 8% em Bangladesh, nossas taxas de lucro para depósitos vão entre 0,5% e 4%, enquanto as taxas de juros cobradas nos empréstimos variam de -8% a 12%. Nós obtemos um lucro honesto. (O banco concede os empréstimos com taxas variáveis - -8% a 12% - e remunera o investidor com uma taxa que resulta do 'mix' dos juros cobrados nesses empréstimos.)

Qual é o prazo médio dos depósitos?

A maior parte dos empréstimos tem um ano de duração.