Título: Vivendo no mundo da China
Autor: Stephen Kotkin
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/11/2006, Economia, p. B6

Hoje os Estados Unidos são um colosso na Ásia. Mas entre 1999 e 2004 o comércio entre os países asiáticos aumentou mais de 80%, para US$ 1,2 trilhão, de acordo com a Organização Mundial do Comércio (OMC). Dentro da Ásia, as trocas comerciais chegaram a ultrapassar o comércio entre a Ásia e os Estados Unidos.

A China tornou-se o maior parceiro comercial de praticamente todos os países asiáticos. Mesmo o intercâmbio comercial entre países que durante muito tempo foram rivais, como China e Índia, na última década cresceu de cerca de US$ 1 bilhão ao ano para um valor ainda maior, por mês. Dos US$ 600 bilhões de investimentos externos diretos feitos na China desde 1978, metade veio de dentro da Ásia.

A Ásia é uma economia regional interdependente, competitiva, gigante, que afeta o mundo. Os vínculos culturais já existentes também estão se fortalecendo por causa dos intercâmbios estudantis e do turismo entre os países asiáticos, que está explodindo. Peças de teatro e música pop da 'Korean wave' (onda coreana) hoje podem ser encontradas em quase toda a Ásia, junto com produtos japoneses e de Hong Kong. E hoje, também, muitas vezes fica difícil distinguir as origens nacionais de filmes e programas de televisão dublados.

O livro China Shakes the World (A China sacode o mundo), de James Kynge, não trata dessa Ásia interconectada. Mas Kynge, que passou mais de uma década na China como jornalista, tornando-se o chefe da sucursal do jornal The Financial Times em Pequim, nos oferece uma leitura matizada e soberbamente escrita sobre a China confundindo o Ocidente.

Como expressar a ascensão da China? Usando um estratagema inteligente, Kynge viaja para Dortmund, Alemanha, para visitar um enorme buraco.

Esse buraco foi feito por Shen Wenrong, fundador da empresa Shagang Steel. Essa companhia foi criada nos anos 70, como uma fundição ilegal de barras de ferro, e a produção, sem licença, permitiu que uma empresa têxtil chinesa se expandisse sem aprovação dos urbanistas do governo.

Transgressão, Kynge afirma corretamente, é o segredo da ascensão da China.

Por três décadas, Shen assumiu riscos colossais e finalmente tinha uma das maiores siderúrgicas da Europa embalada e transportada para o vale de Yang-se.

Ele pagou apenas US$ 24 milhões, o valor da fábrica em sucata, mas ela pode produzir aço de alta qualidade para veículos, uma das fronteiras estratégicas da China.

Prato, na Itália, foi outro destino de Kynge. Ali ele verificou que o setor têxtil da Toscana passava por um boom de trabalhadores manuais chineses, que pagaram comissões extorsivas para contrabandistas de imigrantes ilegais, para sua passagem perigosa para a Europa. Mas alguns desses operários aproveitaram-se das suas conexões e conhecimentos adquiridos para reproduzir as operações de produção de roupas na China a um custo baixíssimo, deixando seus ex-patrões sem emprego.

Quando intelectuais europeus falam retoricamente do 'capitalismo neoliberal predatório', eles se referem aos Estados Unidos, mas em Rockford, Illinois, Kynge ficou sabendo como uma empresa chinesa, a Dalian Machine Tool Group, engoliu a Ingersoll Production Systems, espalhando os empregados especializados americanos desta última em empregos ganhando uma bagatela de US$ 7 a hora. E, então, a Dalian tentou se aproximar da presa maior, a Ingersoll Milling Machine Company. A operação foi impedida quando alguém avisou o Pentágono a respeito, que ajudou a anular a venda.

Passe por cima dos confusos prognósticos de Kynge sobre essa onda protecionista em curso, mas se aprofunde nas suas vigorosas ilustrações. Liu Chuanzhi, quando estudante, extraía excremento das toaletes públicas para produzir fertilizante. Foi enviado para os arrozais durante a Revolução Cultural de Mao, sobreviveu e fundou a Lenovo que, em 20 anos, se transformou numa divisão de computadores pessoais da IBM.

Assim, o autor ilustra como a ascensão da China não é um chavão, mas algo de fato significativo - até mais ampla e mais rápida do que a dos Estados Unidos no século 19.

Kynge devota quase metade do seu livro às vulnerabilidades da China. O país tem 16 das 20 cidades mais poluídas do mundo, enquanto seus recursos hídricos não só estão encolhendo, mas estão também bastante contaminados. A China já é uma catástrofe ecológica. O pior está por vir.

E a poluição é só o primeiro dos problemas. A corrupção aniquilou a confiança da sociedade. Kynge descreve como autoridades na Província de Henan criaram um banco de sangue que foi contaminado pelo vírus HIV e infectou cerca de um milhão de camponeses. Mas, em vez de fecharem o banco de sangue, as autoridades prenderam ativistas e maltrataram jornalistas.

Resultados de exames roubados, policiais impostores. Fraudes e fraudes realçam problemas de governança profundos, além da falta de liberdade.

Kynge insinua que, embora o Partido Comunista ainda tenha pleno controle, as transgressões de leis e regulamentos pelas autoridades teriam degenerado numa crise institucional no caso de uma economia capitalista.

As fortes predileções dos novos consumidores estão ausentes do livro.

Mas Kynge utiliza o conhecido tema da pirataria para elucidar as complexidades da economia chinesa. Ele narra a história de Yin Mingshan e sua motocicleta Lifan, fabricada com tecnologia roubada da Honda - copiada e vendida a preço inferior por outros piratas chineses. Em 1998, mais de mil empresas chinesas estavam fabricando 15 milhões de motocicletas, 5 milhões mais do que a quantidade de motos vendidas. Não é de estranhar que é difícil ganhar dinheiro na China.

Produtores que não conseguem ter lucro continuam tendo acesso a capital vindo dos chamados bancos na China e a novas tecnologias vindas de estrangeiros desesperados por uma joint venture que possa conectá-los com aqueles inatingíveis 1,3 bilhão de clientes. Kynge calcula que 90% dos produtos manufaturados na China formam um excedente de aprovisionamento, porque, quando as cópias reduzem os lucros no caso de produtos essenciais, os piratas chineses passam para outros produtos copiados. Eles lêem traduções pirateadas de John F.Welch Jr. e aniquilam o seu concorrente.

Em seguida, partem para o exterior. A motocicleta Lifan foi levada para o Vietnã, sendo vendida a um preço inferior ao da Honda, dando início a uma investida dos piratas. Mas a Honda reagiu, criando uma fábrica numa ilha chinesa do lado oposto do Vietnã para garantir as cópias baratas de peças japonesas. Aqui , com as empresas chinesas e japonesas se esmurrando para ter uma fatia do mercado do Vietnã, temos um vislumbre das oportunidades e as tensões recíprocas sem paralelos que existem na Ásia.

Aumentar a prosperidade e a integração na Ásia representa um retorno a padrões históricos. Mas nunca antes se viu Japão e China tão fortes simultaneamente.

Para quem se dedica a estudos internacionais nas universidades americanas, o principal desafio não superado é compreender as amplas conexões globais que não estão centralizadas nos Estados Unidos, e como o sucesso da China ou do Vietnã pode contradizer os modelos de ciências sociais.

Para as empresas internacionais com sede nos Estados Unidos, o imperativo é capitalizar não só em cima do crescimento no âmbito dos países asiáticos, individualmente, o que é difícil para os estrangeiros, mas simultaneamente nos países com os quais realizam negócios, regionalmente. Caso da China-Japão-Vietnã, ou do Japão-China, Coréia-Japão, e também Índia-China, sem mencionar Índia-Golfo Pérsico e China-África.

Isso também é globalização, também.