Título: Se...
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Estado de São Paulo, 02/10/2006, Espaço Aberto, p. A2

Escrevo esse artigo antes do resultado das eleições.

Se Lula ganhar no primeiro turno, o setor majoritário da população brasileira se terá mostrado insensível, se não anestesiado, a questões de ordem ética. Durante anos, o Brasil vem amadurecendo no que diz respeito aos problemas de moralidade pública. Collor chegou a sofrer um processo de impeachment e, no geral, candidatos comprometidos com a corrupção foram perdendo importância. Alguns desapareceram da cena política. Agora, estão sendo ressuscitados. O PT, naquele então, foi um ator decisivo para que questões relativas à ética na política viessem a fazer parte da vida pública. A moralidade tinha se tornado um valor nacional, suprapartidário. Ora, o PT no poder não apenas sucumbiu às práticas que condenava como se organizou para canalizar para si, em proveito próprio, recursos públicos. O crime terá sido recompensado. O que esperar?

Se Lula ganhar, o aparelhamento partidário do Estado terá mostrado a sua eficácia. Politicamente será considerado compensador colocar militantes, sem qualificação, em funções do Estado, com o intuito de fortalecer os cofres partidários e tornar o público refém do privado/partidário. Os demônios, isto é, os vampiros, os sanguessugas, os valérios, os delúbios, os mensalões, o pessoal do presidente do dossiê Cuiabá e toda essa miríade de personagens que se caracterizam pela ¿defesa¿ da coisa pública poderão passear tranqüilamente, pois terão servido à Causa. A corrupção terá, então, dado um salto de qualidade, sendo mais sistêmica, obedecendo a orientações partidárias. Como disse o presidente, não se trata de crimes, mas de ¿erros¿ de ¿meninos¿ ¿aloprados¿. Depois disto, tudo será permitido!

Se Lula ganhar, a traição dos intelectuais que servem à Causa exibirá novamente a sua velha operacionalidade. Primeiro, elogiaram o ¿silêncio¿, depois calaram diante da corrupção levada a cabo por seu partido. Embora cada vez mais desprestigiados como intelectuais, por traírem a verdade, eles terão mostrado a sua vitalidade, a vitalidade dos que reconhecem na servidão voluntária um bem maior. A mentira e o engano continuarão caracterizando a sua ação e orientando o próximo mandato presidencial.

Se Lula ganhar, o neopopulismo terá exibido a sua eficácia num país que resiste a modernizar-se. O grande pilar de sua eleição terá sido o Bolsa-Família e o aumento real do salário mínimo. Não dispondo de uma política efetiva de inserção dos mais necessitados no mercado de trabalho, ele terá feito do assistencialismo social o fundamento do clientelismo político. Uma clientela cativa foi feita na população, que se teria deixado embalar por um comunicador que gosta de comparar-se a seus antecessores populistas. E com o beneplácito de uma ¿intelligentsia¿(sic) que adora ser enganada por suas próprias palavras.

Se Lula ganhar, o ¿neoliberalismo¿ terá mostrado a sua verdade. Evidentemente, a política macroeconômica atual, herdada do governo anterior, terá se apresentado como a única possível. Jogando com as palavras, ela será, agora, dita de ¿esquerda¿, para se opor à anterior, dita de ¿direita¿. Graças à manutenção da política econômica ¿neoliberal¿, a estabilidade da moeda e, particularmente, a valorização do real possibilitaram alimentos mais baratos e maior poder aquisitivo para a população pobre. Graças ao ¿neoliberalismo¿, a ¿esquerda¿ pode ganhar as eleições. Torna-se, porém, necessário engambelar tanto os favorecidos quanto os militantes e setores dos intelectuais. O mais surpreendente é que alguns gostam de ser enganados.

Se Lula ganhar, a impunidade terá vencido. Todos os ministros, parlamentares e dirigentes do PT e da base aliada terão, de uma ou outra maneira, sido prestigiados. Continuam gozando da estima do presidente, que a eles se refere sempre carinhosamente, uma vez passado o momento da encenação pública em que aparentemente são condenados. Muitos voltam a se encontrar com o presidente e, como não poderia deixar de ser, ganharam legenda para disputar estas eleições. O partido lhes dá guarida, quando não lhes paga também advogados. À Comissão de Ética do partido ninguém compareceu. O atual presidente do partido, Ricardo Berzoini, chegou a dizer uma ¿pérola¿: não cabe ao partido investigar! Ah, bom!

Se Lula ganhar, determinadas categorias do marxismo vulgar continuarão a guardar validade partidária. Tudo será explicado em termos da ¿luta de classes¿, conceito com o uso do qual alguns chegam a se babar. As suas diferentes versões são as oposições entre ¿ricos e pobres¿, ¿empresários e empregados¿, ¿elites e trabalhadores¿, e assim por diante. A corrupção sistêmica, de cunho partidário e de obediência à Causa, terá, assim, ganho um ¿glamour¿ ideológico, que encanta os incautos do pensamento. A esquizofrenia terá o estatuto da normalidade, pois a política ¿neoliberal¿ aparecerá mesclada com a ¿luta de classes¿, de mãos dadas e na mesma trincheira.

Se Lula ganhar, colocar-se-á a questão da legitimidade do atual governo. Adiantando-se à questão, alguns ministros-ideológos avançam o argumento do ¿golpe¿. Freud explica, o austríaco e o brasileiro. Nenhum tribunal poderia julgar o novo presidente, pois já teria sido julgado pelas urnas. É como se as urnas, na versão de que a História julga, conferissem um veredicto de absolvição e de justiça. Ora, se a aclamação popular fosse critério de justiça, Stalin, Hitler e Mao estariam, de antemão, julgados e absolvidos. Seria melhor chamar a coisa pelo seu verdadeiro nome: o projeto partidário seria do mesmo tipo. Se não é, valem as decisões legais, as interpelações e outras medidas jurídicas, pois o julgamento, numa sociedade republicana, é feito por homens, juízes e ministros, que têm essa incumbência específica. Tribunais julgam, e não a História, a menos que se queira contar uma outra ¿história¿.

Se Alckmin for para o segundo turno, este artigo pode ser lido ao contrário.