Título: Duas tarefas urgentes
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Fonte: O Estado de São Paulo, 02/10/2006, Notas e Informações, p. A3

O novo governo terá de cuidar, já no próximo ano, da renovação de dois instrumentos provisórios sem os quais entrará em crise financeira em 2008. Um deles é o famigerado imposto do cheque, oficialmente conhecido como Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), que em 2007 deverá render ao Tesouro Nacional R$ 35,5 bilhões, segundo a proposta de lei orçamentária. O outro é a Desvinculação de Receitas da União (DRU), expediente inventado para diminuir a rigidez do Orçamento-Geral da União. Descontadas as transferências constitucionais a Estados e municípios, esse dispositivo isenta de vinculações 20% dos impostos arrecadados pelo governo federal.

Criada nos anos 90, a CPMF já foi renovada duas vezes. Inicialmente deveria financiar a política de saúde, mas acabou caindo na vala comum da arrecadação federal. Políticos denunciam o ¿desvirtuamento¿ dessa contribuição, mas esse não é seu pior defeito. Técnica e politicamente a CPMF é uma aberração. Já há tributos sobre a produção de bens e serviços e também sobre o consumo, o investimento produtivo, o comércio internacional e todas as formas de rendimento. Todos os tipos de atividade econômica já são onerados por impostos e contribuições, mas o brasileiro ainda é tributado pela mera movimentação de fundos.

Trata-se, portanto, de um tributo injustificável com base nos critérios da boa gestão econômica, mas nesta altura o governo não pode dispensá-lo, porque seus gastos cresceram sem parar desde a última década.

Ministros da área financeira e funcionários da Receita Federal têm defendido a conversão da CPMF num tributo perene, para usá-lo como instrumento de fiscalização. Incidindo em quase toda operação financeira, essa contribuição pode facilitar o controle das operações declaradas pelos contribuintes.

O argumento não é desprezível. Mas seria necessário, nesse caso, adotar uma alíquota baixíssima, para eliminar tanto quanto possível as distorções causadas por esse péssimo tributo. A alíquota em vigor, 0,38%, é desastrosa para a atividade produtiva. Mas falta determinar o que seria uma alíquota bastante baixa num ambiente global de concorrência feroz, em que uma pequena diferença de custos pode ser decisiva.

A cobrança de contribuições - essa não é a única - proporciona ao governo federal uma vantagem nem sempre percebida pela maior parte dos contribuintes: tributos dessa classe não são sujeitos a transferências constitucionais a Estados e municípios. Também essa escolha foi um meio de reforçar a receita do governo central sem partilha com as administrações subnacionais. Governadores e prefeitos há muito tempo reclamam dessa esperteza federal.

A criação da Desvinculação de Receitas da União foi também um subterfúgio para tornar mais administrável o Orçamento-Geral da União. As contas federais são muito rígidas, por causa das vinculações explícitas (saúde e educação, por exemplo) e de vários gastos incontornáveis, como os da folha de salários.

A solução correta seria mexer na estrutura orçamentária, para eliminar as vinculações. Mas para isso seria necessário emendar a Constituição. A rigidez do Orçamento é um problema tão sério que altos funcionários do Fundo Monetário Internacional a mencionaram pelo menos duas vezes durante a assembléia anual da entidade, em setembro, em Cingapura.

Se o novo governo quiser, de fato, melhores condições de administração financeira, deverá cuidar logo de mudanças politicamente complicadas e de longo alcance. Terá de prorrogar a vigência daqueles dois instrumentos, porque não poderá dispensá-los a curto prazo. Mas, dessa vez, terá de levar a sério o caráter provisório tanto da CPMF quanto da DRU.

A solução, portanto, será cuidar seriamente da emperrada reforma tributária e mudar a estrutura do Orçamento, para dar ao governo maior flexibilidade no uso do dinheiro público. A rigidez orçamentária é incompatível com uma administração racional e eficiente e um obstáculo importante à retomada dos investimentos públicos. O governo já abusou de remendos e subterfúgios e mantê-los por mais tempo será ruim para a economia nacional.