Título: Os dramas da água, a pior das pobrezas
Autor: Washington Novaes
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/11/2006, Espaço Aberto, p. A2

O tema é incômodo e inquietante. Mas é preciso insistir. Porque a cada dia são mais evidentes e mais graves as indicações do impasse civilizatório, no que se refere às relações humanas com os elementos constitutivos da vida - o ar, a água, o solo, os demais seres vivos.

Há duas décadas vêm cientistas e ambientalistas - no Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, na Academia Nacional de Ciências dos Estrados Unidos, no Tyndall Centre da Grã-Bretanha, em muitos lugares - advertindo sobre a gravidade das mudanças climáticas provocadas pela ação humana. Há poucos dias, a advertência deslocou-se para a área econômica, com o estudo do ex-economista-chefe do Banco Mundial sir Nicholas Stern sobre a megarrecessão que poderemos ter se os governos e as sociedades não enfrentarem adequadamente a questão. Recebeu respostas iradas - mas insatisfatórias - de muitos economistas, entre eles, Paul Samuelson.

Também há duas décadas se sucedem relatórios - dos programas das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e para o Desenvolvimento Humano (Pnud), do WWF, do Worldwatch Institute - sobre a insustentabilidade dos padrões globais de produção e consumo, já 25% além da capacidade planetária de reposição dos recursos naturais e concentrados em 80% nos países industrializados, onde estão menos de 20% da população mundial (o Brasil também consome além da capacidade média global, embora tenha 'reserva ecológica' alta).

Há poucas semanas, o relatório Países ricos, pobre água, também do WWF, alertava: países ricos, na Europa, na América do Norte, no Pacífico, já enfrentam graves problemas com os recursos hídricos. E agora é o Pnud que, no relatório Além da escassez: poder, pobreza e a crise global da água, divulgado na semana passada, deixa claro: centenas de milhões de pessoas não têm acesso à água, não por escassez, mas por causa da pobreza, da desigualdade, de deficiências de governos. São 1,1 bilhão de pessoas nos países 'em desenvolvimento' sem acesso doméstico à água, 2,6 bilhões sem saneamento básico. E, por causa de doenças veiculadas pela água de má qualidade buscada fora de casa, morrem 1,8 milhão de crianças por ano, uma a cada 18,7 segundos, seis vezes mais que a média anual de mortes em conflitos armados nos anos 1990.

São muitos números assustadores, não é preciso repetir todos. Mas convém insistir em que 'os pobres têm menos água, pagam mais por ela (até dez vezes mais que os ricos, na mesma cidade), têm de caminhar muito para obtê-la'. De 1,1 bilhão que sofrem com a escassez, 660 milhões vivem abaixo da linha de pobreza, com rendimento inferior a US$ 2 por dia. Nesse quadro, diz o Pnud, os problemas centrais são:

Como financiar o abastecimento de água e redes de esgotos para as populações pobres;

como levar água em boas condições às populações rurais que não vivem perto de mananciais.

Neste ponto, chega-se ao Brasil. Dizem os Indicadores de Desenvolvimento Sustentável (IBGE, 2004) que 91,3% da nossa população urbana está ligada a redes de água, ante 22,7% dos domicílios rurais; 51,6% dos domicílios urbanos dispõem de redes coletoras de esgotos; 23,3%, de fossas sépticas; e 18,1%, de fossas rudimentares (o Pnud engloba redes e fossas sépticas e considera 75% da população atendida por 'saneamento adequado'); nas zonas rurais, apenas 3,2% se ligam a redes de esgotos (32,9% não dispõem delas nem de fossas). Portanto, nas cidades, mais de 12 milhões de pessoas não têm redes de água, mais de 70 milhões não contam com redes de esgotos. E, dos esgotos coletados, 65% (ou quase 10 milhões de metros cúbicos por dia) não recebem tratamento, são despejados 'in natura' nos rios e no mar. A quase totalidade dessas pessoas desprovidas de redes de água e de coleta de esgotos está nas faixas mais pobres da população.

E que se vai fazer para enfrentar o problema? Tudo depende do chamado 'marco regulatório' do saneamento, que há mais de dez anos tramita pelo Congresso Nacional. Em julho último, o Senado aprovou o projeto 219/06, que ainda terá de passar pela Câmara dos Deputados (e voltar ao Senado, se for modificado); depois, ter sanção presidencial; se houver vetos, dependerão de aprovação no Congresso. Mas o 'marco regulatório' não resolve os problemas centrais que têm emperrado avanços no setor:

Deixa para o Supremo Tribunal Federal (STF) resolver a questão da 'titularidade', ou seja, se o saneamento básico cabe aos Estados ou as municípios; mesmo que repita o que está na Constituição - cabe aos municípios -, não se resolverá o problema das áreas metropolitanas, onde as redes de água e esgotos de vários municípios estão interligadas (mais de 30 na Grande São Paulo); se um município quiser tomar o controle das suas redes, como fará para separá-las? E para indenizar a empresa estadual de saneamento?

Quem investirá para implantar redes de água e esgotos nas áreas pobres de cada cidade, onde os moradores não têm como pagar, em suas contas, o investimento? Fala-se em 'subsídios cruzados', com os outros usuários (ou o Estado) arcando com esses custos; mas isso quase não tem acontecido, mesmo onde seria possível; e será ainda mais complicado em municípios onde o saneamento for privatizado.

Dizem os especialistas que serão necessários uns R$ 200 bilhões em 20 anos - ou R$ 10 bilhões anuais - para suprir nosso déficit de redes de água e esgotos. Tem-se investido muito menos que isso, menos de metade.

Quem nos convencerá de que não basta nos angustiarmos, de que temos de partir para a ação sem perda de tempo?