Título: O preço da harmonia
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Fonte: O Estado de São Paulo, 21/11/2006, Notas e Informações, p. A3

Quando todos têm aumento, ninguém reclama e tudo fica em paz. Com esta fórmula, as autoridades brasileiras dão eficácia ao preceito constitucional da harmonia entre os Poderes. Sai caro para os contribuintes, mas todo bom cidadão aceita o sacrifício pela Pátria. Não há por que reclamar, portanto, quando senadores e deputados planejam duplicar seus vencimentos. Afinal, eles se dispõem a votar até o fim do ano o aumento salarial dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Aliás, a chefe do Judiciário, ministra Ellen Gracie, também decidiu pedir ao Congresso uma remuneração maior para os membros do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), aquela entidade responsável pela implantação, nos tribunais de todo o País, do teto salarial dos juízes.

Congresso e tribunais não estão sozinhos, nem poderiam estar, numa República tão empenhada em manter a harmonia entre as várias esferas governamentais. O Conselho Nacional do Ministério Público também decidiu estudar a equiparação do teto salarial da categoria ao dos ministros do STF - ambição manifestada também por integrantes do Legislativo.

O Executivo não está fora desse grande movimento de harmonização - e até de confraternização geral dos Poderes constituídos. O presidente da República determinou, há meses, novos padrões de remuneração para várias categorias do serviço público federal. Houve, no Judiciário, quem pusesse em dúvida a legalidade da iniciativa em tempo de eleição, mas o assunto logo se esclareceu. Para não deixar dúvida sobre o assunto, o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo, telefonou à presidente do STF para manifestar o apoio do Executivo à proposta de revisão salarial do Judiciário.

Como sempre existem alguns inconformados, meia dúzia de desmancha-prazeres contestam esse grande movimento nacional pela paz entre os Poderes da República. Segundo alguns, a elevação dos salários do Ministério Público estadual violaria os limites legais fixados para os vencimentos de cada categoria funcional. Outros mostram preocupação com os efeitos fiscais dessas mudanças.

O próprio presidente da República, depois de haver promovido a distribuição de vantagens no período eleitoral, decidiu, segundo informação obtida em Brasília na semana passada, propor aos novos governadores a fixação de limites para os aumentos de gastos do Judiciário e do Legislativo.

Mas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem sido ambíguo, se não contraditório, ao tratar do gasto público. Em alguns momentos, dá a impressão de rejeitar quaisquer propostas de corte, preferindo apostar no crescimento da economia para fortalecer as contas governamentais. Noutras ocasiões, parece disposto a aceitar medidas para conter o rápido crescimento da despesa. Seja qual for sua decisão, neste momento as manifestações do presidente refletem as opiniões de conselheiros com diferentes concepções de como promover o crescimento de forma equilibrada e segura.

Para o espectador mais preocupado com as limitações aritméticas e com a gestão eficiente da economia nacional, a corrida por maiores salários no setor público é incompatível com qualquer programa de expansão econômica sustentável. Se juízes, procuradores, legisladores e funcionários do Executivo continuarem a inflar a folha de pagamentos do setor público, o esforço de ajuste fiscal vai escorrer pelo ralo, as pressões inflacionárias crescerão fatalmente e o Banco Central só baixará os juros se for inteiramente irresponsável.

Mas aquela corrida continuará enquanto os vencimentos do Judiciário, limites máximos para todo o funcionalismo, continuarem a aumentar. Se os membros do CNJ receberem gratificação de 12% para participar de sessões - normalmente duas por mês -, o teto salarial do Judiciário será ultrapassado por iniciativa da própria presidente do STF. Há, no entanto, uma fórmula menos perigosa para manter a harmonia entre os Poderes.

É a imposição de limites ao crescimento de gastos do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público - na prática, um quarto Poder. Devem ser, naturalmente, limites para valer, compatíveis com a boa gestão dos impostos pagos pelos contribuintes.