Título: Dividida, Hungria lembra revolução
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2006, Internacional, p. A12

Os húngaros comemoram hoje o 50º aniversário do início de seu levante contra o domínio soviético mais divididos do que nunca desde o colapso do regime comunista, em 1989. Mais de quatro semanas de protestos antigovernamentais - após o primeiro-ministro socialista Ferenc Gyurcsani ter admitido que mentiu sobre a economia para vencer as eleições gerais de abril - exacerbaram divisões profundas neste país de 10 milhões de habitantes.

Muitos líderes da direita questionaram se os socialistas, sucessores diretos dos comunistas - cujo regime foi cimentado por mais de 33 anos quando tropas soviéticas sufocaram o levante de 1956 - deveriam celebrar o aniversário.

O principal partido de centro-direita, Fidesz, está boicotando os discursos de Gyurcsany no Parlamento depois do vazamento de uma fita em 17 de setembro em que ele dizia 'nós mentimos de manhã, nós mentimos de noite' para vencer as eleições.

O partido também boicotará seus discursos hoje. Haverá três comemorações: uma série de eventos para dignitários estrangeiros, um evento de veteranos e um comício do Fidesz perto do edifício da rádio estatal, cenário de combates ferozes em 1956.

Numa cerimônia realizada ontem à noite, algumas pessoas que estavam sendo condecoradas pelo governo - incluindo veteranos de 1956 - se recusaram a apertar a mão de Gyurcsany ou a do presidente do Parlamento, Katalin Szili, também socialista, e apertaram a mão apenas do presidente Laszlo Solyom.

Solyom, que tem sido acusado pelo governo de interferir na democracia pedindo que o Parlamento reveja se Gyurcsany é um primeiro-ministro adequado, disse ontem que as lições de 1956 não foram aprendidas. 'Precisamos demonstrar que a dignidade de 1956 é mais forte do que tudo o mais', pediu o presidente.

Gyurcsani deve fazer um discurso na presença dos convidados estrangeiros no Parlamento hoje, dia do aniversário da passeata estudantil que deu início à revolução. Mas partidos políticos e organizações rivais realizarão suas próprias comemorações. Oposicionistas e veteranos da revolução anunciaram que boicotarão o pronunciamento de Gyurcsany para não 'respirar o mesmo ar' de um político cujo partido é o sucessor dos comunistas que ajudaram os russos a esmagar o levante de 1956.

'Este aniversário deveria ser um recomeço num momento em que todos podem entrar em acordo. Infelizmente, ninguém acredita que isso possa acontecer', disse Pal Germuska, um historiador do Instituto 1956 da prefeitura de Budapeste. 'Os que lutaram pela liberdade e os assassinos ainda convivem nesta sociedade. Cinqüenta anos não são suficientes para resolver todos os problemas.'

'REVOLUÇÃO GENUÍNA' Joseph Rothschild, historiador americano que estuda a Europa Oriental e Central, definiu os fatos da Hungria de 1956: 'Não foi uma mera rebelião, um levante, uma insurreição, mas uma revolução genuína domesticamente vitoriosa, derrotada apenas pela esmagadora força estrangeira.'

Três anos depois da morte de Josef Stalin e alguns meses depois de Nikita Kruchev tê-lo criticado severamente, a revolução húngara inicialmente pretendeu afrouxar a ditadura soviética no coração da Europa. Pouco antes do levante de Budapeste, houve uma insurreição de trabalhadores na Polônia que extraíram concessões do Kremlin e incentivaram o herói reformista da Hungria, Imre Nagy, a ir adiante.

Dez dias depois de iniciada a revolução, a escala e a ousadia do projeto de Nagy ficaram patentes quando ele ordenou a retirada do Exército Vermelho da Hungria, reinstaurou o pluralismo político em substituição ao regime comunista, anunciou que a Hungria estava deixando o Pacto da Varsóvia e declarou a neutralidade militar do país, como tinha acontecido na vizinha Áustria um ano antes, quando os russos encerraram sua presença pós-guerra.

Nagy questionou o poder absoluto do Kremlin na Europa Central e Oriental. Foi encorajado tanto pela hesitação soviética como pelo apoio dos Estados Unidos.

Mas os húngaros acabaram sendo traídos pelos americanos e derrotados pelos soviéticos. Passados 13 dias, os soviéticos enviaram tanques para esmagar a revolução, em 4 de novembro. Os americanos, que andaram transmitindo dicas sobre como fazer coquetéis molotov e desafiar os russos, prontamente fizeram vista grossa quando os russos esmagaram a insurgência.

Mais de 2.500 húngaros foram mortos, cerca de 20 mil ficaram feridos e 200 mil fugiram, primeiro para a Áustria e de lá para os Estados Unidos, Canadá e Austrália, na primeira grande crise de refugiados da Europa desde a 2ª Guerra Mundial. Em 1958, Nagy foi executado e seu corpo, lançado numa cova sem identificação.

Passados 50 anos, o país não é capaz de unir-se para lembrar os heróicos revolucionários. 'A Hungria nunca foi unida. Mesmo em 1956, ficou unida apenas por alguns momentos', assinalou Germuska. 'Este é um grande aniversário. E uma grande oportunidade perdida.'