Título: Referendo do desarmamento vira modelo para lobistas americanos
Autor: Adriana Carranca
Fonte: O Estado de São Paulo, 23/10/2006, Metrópole, p. C6

A vitória do 'não' no referendo sobre a proibição do comércio de armas no Brasil, que completa um ano hoje, tem sido usada internacionalmente pelos maiores lobistas americanos pró-armas como estudo de caso. As poderosas National Rifle Association (NRA) e World Forum on the Future of Sport Shooting Activities (WFSA) têm financiado viagens de um porta-voz do 'não' aos Estados Unidos e Europa para discursar sobre as estratégias usadas na campanha para ganhar a opinião pública e convencer a população a votar contra o desarmamento.

'Tornei-me a cara do 'não'', diz o coronel Paes de Lira, porta-voz da Frente Parlamentar pelo Direito à Legítima Defesa, eleito deputado federal no dia 1º com uma plataforma contra o Estatuto do Desarmamento. Desde a vitória no referendo, ele já esteve na Alemanha e em três cidades americanas.

'Fui mostrar o exemplo do Brasil. Pesquisas diziam que a nossa posição seria esmagada por 85% a 15%. Viramos essa perspectiva porque levamos à população uma mensagem clara, a do direito à legítima defesa.' O mote da campanha do 'não' no referendo brasileiro - em que a proibição da compra e porte de armas é colocada como violação de um direito constitucional - é o mesmo usado pela NRA, baseada numa interpretação da Segunda Emenda da Constituição americana, que garante o direito da população de 'manter e portar armas quando a organização de cidadãos armados se fizer necessária para a segurança de um Estado livre'.

A NRA chegou a enviar ao País um de seus principais lobistas, Charles Cunningham, para um encontro com defensores do comércio de arma. O encontro foi confirmado ao Estado pelo coronel Paes de Lira, que assistiu à palestra do lobista sobre a estratégia da NRA. 'Aprendi muito com ele', diz.

Usada no referendo, a estratégia do direito à legítima defesa pegou de surpresa os defensores do desarmamento e, no dia da votação, levou 64% da população a optar pelo 'não'. Como se deu essa virada é o que Paes de Lira relata nos discursos que tem feito a convite dos lobistas americanos.

Em Milwaukee, na sede da NRA, com 4 milhões de associados entre fabricantes e portadores de armas, o coronel foi homenageado após discursar ao Comitê de Política Legislativa da organização. Em Washington, após apresentar o 'caso Brasil', ele recebeu a medalha de São Gabriel Possenti, o padroeiro dos atiradores, 'em reconhecimento à sua luta contra o desarmamento das pessoas de bem'.

O amuleto lhe foi entregue pelas mãos de John Snyder, diretor da Citizens Committee for the Right to Keep and Bear Arms (Comitê de Cidadãos pelo Direito de Manter e Carregar Armas), que mantém um lobista em período integral na Casa Branca e um fundo para financiar candidatos pró-armas em eleições estaduais e federais.

Em Nuremberg, o coronel discursou no Fórum Mundial Sobre o Futuro dos Esportes com Armas, onde foi aplaudido por atiradores americanos, canadenses, australianos e europeus. O evento foi organizado pela WFSA, que tem entre seus membros associações comerciais e de fabricantes de armas e munições.

Também à convite da WFSA, Paes de Lira falou no plenário da Organização das Nações Unidas (ONU) para delegados de 120 nações na Conferência sobre o Controle de Armas Leves, em junho, onde exigiu 'respeito à decisão tomada pelo povo brasileiro'. O recado, segundo ele, foi endereçado ao secretário-geral da ONU, Kofi Annan, e à delegação brasileira que estariam 'alinhados numa corrente muito forte dentro da ONU para a obtenção de um tratado internacional (pelo desarmamento)'

CONTRA AS ARMAS

O tratado está sendo discutido pela Comissão de Desarmamento e Anti-Proliferação da ONU, que se reúne até o dia 31 em Nova York. Na comissão, a diplomacia brasileira defende maior regulação internacional sobre o comércio de armas pequenas, o que, acredita o Itamaraty, teria como efeito limitar o tráfico ilícito.

'Seiscentos milhões de armas de fogo e 16 bilhões de cartuchos de munição são produzidos no mundo por ano e não há controle internacional nenhum. Enquanto isso, as armas leves matam 500 mil por ano, quase uma pessoa por minuto', diz o diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, Denis Mizne.

Lobistas pró-armas americanos, no entanto, são contra o tratado e têm procurado expandir sua influência sobre a opinião pública internacional. 'A NRA se deu conta de que a estratégia baseada em direitos se traduz para muitos idiomas', relatou Josh Kurlantzick, pesquisador do Carnegie Endowment for International Peace, em artigo publicado na revista do New York Times, dia 17, em que fala sobre o marketing global da NRA e sua influência no referendo brasileiro. Segundo ele, na metade dos anos 1990, a NRA formou uma coalizão pró-armas para lutar contra grupos pelo desarmamento na esfera internacional.