Título: 'EUA temem nova imigração de Cuba'
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/08/2006, Internacional, p. A10

Marifeli Perez-Stable, uma cubana de Havana especializada no estudo da democracia na América Latina e Caribe, emigrou com a família para os EUA em 1960, quando tinha 11 anos. Na juventude, tornou-se ovelha negra na comunidade exilada porque torceu pelo sucesso da revolução. Nos anos 80, ganhou a antipatia do governo de Havana e passou a ser impedida de visitar a ilha. Seu pecado foi ter colocado seu prestígio de professora do departamento de sociologia e antropologia da Universidade Internacional da Flórida a serviço da defesa dos direitos de expressão em Cuba. Atualmente, é vice-presidente do Diálogo Americano.

A premissa entre os estudiosos e em Washington era que, com Fidel Castro fora de cena, o regime entraria em colapso. Os eventos das últimas semanas mostram que não é bem assim...

Correto. Mas é importante lembrar que Fidel continua vivo e em cena. Estamos diante de um cenário intermediário, no qual pode-se especular, mas é difícil fazer previsões. Há duas certezas: ninguém ocupará o lugar de Fidel e as Forças Armadas preservarão o sistema por algum tempo.

Qual sua preocupação imediata em relação aos possíveis desdobramentos da transição?

A maior é que a política dos EUA parte da premissa de que com o desaparecimento de Fidel tudo o que Cuba precisará é de uma política para tornar-se uma democracia. A realidade é que o regime que sucederá o de Fidel não deve ser visto como algo que durará para sempre, como quer a posição oficial em Havana, e, ao mesmo tempo, não entrará em colapso, como se supõe em Washington. Os EUA estão de mãos vazias sobre como lidar com a complexa realidade que Cuba viverá.

Fatos das últimas semanas sugerem que a transição já começou e será conduzida por Raúl Castro...

Certo, mas, ao mesmo tempo, Raúl e os demais sucessores podem estar diante do que eu chamaria de o pior cenário. Ou seja, Fidel é uma figura diminuída pela doença, mas não o suficiente para afastar-se completamente. Em quase 50 anos de poder, Fidel sempre contornou as instituições do regime.Governou com gente de sua inteira confiança, que se reporta diretamente a ele, sem qualquer intermediação institucional. Embora as informações disponíveis indiquem que está bastante debilitado, ele aparentemente continua em condições de dar ordens. Com Fidel diminuído, mas ainda no controle das decisões, Raúl e os sucessores não poderão iniciar as reformas econômicas que, a meu ver, são o caminho que terão a seguir para ganhar simpatia e tempo junto à população e consolidar sua posição.

Presumindo-se que Fidel não sobreviverá muito mais tempo, qual é o cenário mais provável?

O mais otimista parte do entendimento de que só a democracia será capaz de abarcar e canalizar a diversidade e o pluralismo que existe entre os cubanos. Raúl, se bem que esteja no pólo oposto ao da democracia, é um homem de instituições. O Exército cubano é obra sua. Nos últimos meses houve importantes mudança internas no Partido Comunista em preparação, creio, para a sucessão de Fidel. Com a sua morte, Raúl assumirá plenamente o poder. Algumas reformas econômicas devolveriam uma certa normalidade ao país. Estaríamos ainda longe do Estado de direito pleno, mas se reconheceriam direitos econômicos nada desprezíveis. Seria, também, um primeiro passo para recuperar o apoio, senão a própria vontade popular de escutar o governo depois de longuíssimos dias e noites de zumbidos ideológicos.

Quais os cenários alternativos?

Há vários cenários catastróficos. Um é que Raúl atue de maneira cautelosa, limite-se a reinstituir as reformas econômicas iniciadas no começo dos anos 90 e revertidas mais tarde, e perca a chance de ousar. Não ganhará nada com isso. Simplesmente afrouxar às restrições existentes a atividades de mercado e ao acesso a bens de consumo não será suficiente para aliviar a dureza da vida dos cubanos. Assim, Raúl arrisca mobilizar contra si o descontentamento da população, que hoje é mais econômico do que político. Um outro cenário complicado viria de uma divisão na liderança sobre o rumo a seguir, com um grupo querendo ousar na economia e outro resistindo, em nome da lealdade ao comandante. Nesse caso, o risco é a perda de controle pelo governo e a erupção de protestos nas ruas. Esse seria um cenário catastrófico, pois uma situação de caos provocaria chamamentos à intervenção externa e levaria milhares de pessoas a tentar chegar por mar aos EUA.

Para uma administração agressiva como a do presidente Bush, o comportamento de Washington foi bastante comedido até agora...

Acho que essa é a uma avaliação justa. A razão fundamental dessa moderação é que Washington, embora não o diga dessa forma, deseja acima de tudo evitar uma nova onda de imigração desorganizada. Outra razão é que há provavelmente vozes na administração insistindo em que se deixe aos cubanos a responsabilidade de resolver seu destino. A situação que os EUA enfrentam no Iraque é também um fator da moderação, pois é impensável que alguém acredite que os EUA possam intervir militarmente em Cuba para trazer a paz e a democracia.

A sra. escreveu recentemente que um dos desafios que os cubanos enfrentarão com o fim da era de Fidel será constatar e aceitar que Cuba é bem menos do que eles pensam que é...

Os cubanos, tanto na ilha quanto em Miami, resistem à idéia de que Cuba não seja tão importante. Em Miami, comenta-se que, cinco anos após o fim da era Fidel, Cuba será um país extraordinariamente próspero. A realidade é que vamos ter que assumir Cuba do tamanho que é. E devemos nos preparar também porque o imprevisto pode passar e teremos então que concertar alianças que são hoje inimagináveis. Vamos ter que dialogar e, se Deus quiser, saberemos mobilizar a sabedoria e a generosidade necessárias para nos reconciliarmos em liberdade e democracia. A ironia é que, se formos bem-sucedidos e se Cuba se tornar uma democracia e uma economia de mercado, os EUA deixarão de se importar com o país.