Título: Bento XVI mantém o limbo no limbo
Autor: José Maria Mayrink
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/10/2006, Vida&, p. A40

Ao receber ontem os membros da Comissão Teológica Internacional que se reuniram, nesta semana, no Vaticano para discutir se a Igreja deve abolir o limbo, o papa Bento XVI não tocou no tema, que estava em debate sob a coordenação do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal William Levada.

A conclusão dos teólogos - 29 especialistas, entre os quais o padre brasileiro Geraldo Luiz Borges Hackmann - ainda não foi anunciada, mas a expectativa é de que seja favorável a riscar o limbo das páginas do catecismo. A palavra final será do papa, com base no parecer da comissão.

O conceito de limbo - termo derivado do latim limbus, que significa franja ou borda de uma veste - foi um arranjo dos teólogos em busca de um destino para as crianças que morrem pagãs. Sem o sacramento do batismo, que as tornaria cristãs e participantes da graça divina, elas não poderiam entrar no céu, porque estão marcadas pelo pecado original, mas também não mereceriam ser condenadas ao inferno, porque não cometeram nenhuma falta grave ou pecado mortal. A solução foi a concepção de um lugar neutro, onde não sofreriam nenhum castigo, exceto a privação da visão de Deus - aliás, o maior de todos. No limbo, as crianças teriam um bem-estar eterno.

'Limbo é uma invenção teológica criada a partir de Santo Agostinho', afirma o teólogo Leonardo Boff, autor do livro Vida para além da Morte. Ele considera irrelevante a discussão sobre o tema. 'A Igreja nunca declarou que o limbo existe', observa Boff, acrescentando que a aprovação de uma nova teoria pelo papa Bento XVI não mudaria a vida de ninguém. 'O ser humano está mais ligado à salvação de Cristo do que ao pecado de Adão', ensina. Outros autores católicos que seguem a mesma linha lembram que doutrina sobre o limbo, como uma espécie de depósito intermediário entre o céu e o inferno, se reforçou na Idade Média.

Em 1201, o papa Inocêncio III formulou o que passaria a ser uma opinião comum. 'O castigo sofrido em razão do pecado original é o de ser privado da visão de Deus, o castigo sofrido em razão do pecado atual é o suplício da geena perpétua (inferno eterno)', declarou esse papa. Era uma confirmação da teoria de Santo Agostinho que seria reformulada por outros teólogos, com a noção do limbo para as crianças que morrem o sem o batismo. Segundo Santo Tomás de Aquino, o limbo é, no fundo, um lugar de beatitude. 'Como se crianças ficassem ali jogando futebol e comendo bem', ironiza Leonardo Boff.

O italiano Dante Alighieri encampou a idéia em A Divina Comédia, escrita no século 14. É no limbo que ele encontra o poeta Virgílio, seu guia na visita ao inferno, ao purgatório e ao paraíso, que lhe apresenta outras personalidades que viveram antes de Cristo, como Homero, Horácio, Ovídio, Sócrates e Platão. Pessoas ilustres e boas que só se encontravam ali porque não adoraram o verdadeiro Deus. 'Somos por essa causa, essa somente, perdidos, mas nossa pena é só esta: sem esperança ansiar eternamente', queixa-se Virgílio no Canto IV. Para Dante, o limbo é um vestíbulo do inferno e é destinado também a adultos.

Essa noção corresponde ao Sheol ou Morada dos Mortos, onde os justos de Israel aguardaram a vinda de Cristo, que os conduziu ao céu depois de morrer e ressuscitar. Dante descreve a cena, mais uma vez pelas palavras de Virgílio: 'Era eu ainda novo neste estado quando aqui vi chegar alguém , potente, de signos de vitória coroado', diz o poeta latino, referindo-se à 'descida de Cristo aos Infernos' (no caso, o limbo) para resgatar Davi, Abraão, Moisés, Raquel e outros santos do povo escolhido.

Há, portanto, duas noções de limbo - o dos adultos que dele foram retirados por Cristo e o das crianças não batizadas que jamais chegariam ao céu. A discussão dos teólogos no Vaticano limitou-se ao das crianças, porque o outro já não existe mais.

20 ANOS DE DEBATE

A Igreja debate essa questão há mais de 20 anos, desde quando João Paulo II pediu um parecer a especialistas que vinham se reunindo sob a coordenação da Congregação para a Doutrina da Fé, chefiada pelo cardeal Joseph Ratzinger, agora Bento XVI.

Existe hoje o consenso de que, muito mais do que um lugar, céu e inferno são uma situação definida pela visão beatífica ou pela falta dela. Céu é sinônimo do contato direto com Deus e inferno, o tormento pela privação eterna desse contato. A catequese utiliza imagens para descrever essa situação, apresentando os eleitos sorrindo entre nuvens e luzes no paraíso e os condenados gemendo nas chamas do inferno. Os mesmos recursos são usados para mostrar o purgatório, local provisório de provação, destinado àqueles que não podem ir direto ao céu porque cometeram faltas leves, mas não são mandados para o inferno porque não têm pecados mortais.

'O purgatório, uma espécie de clínica, é outra invenção teológica', afirma Boff, observando que também nesse caso se trata mais de um estado ou situação do que de um lugar. É essa a perspectiva de renomados teólogos modernos, entre os quais Ratzinger. 'A morte não é um acidente, mas o momento culminante da vida, no qual o 'sim' que traduz a adesão a Deus pode suprir o tormento', acrescenta Boff. Segundo o teólogo, 'o que purifica é o amor, não é a dor'.

O Catecismo da Igreja Católica, aprovado em 1992 por João Paulo II, não registra a palavra limbo. Limita-se a declarar que 'quanto às crianças mortas sem batismo, a Igreja só pode confiá-las à misericórdia de Deus'. É a reafirmação da posição de teólogos que há muito rejeitam o limbo. 'Esta teoria dificilmente pode ser conciliada com o dogma da vontade universal de Deus em favor da salvação, manifestada pela verdade de que Cristo morreu por todos', escreveu o alemão Bernhard Haering.

João Paulo II teria resistido à idéia do limbo por razões pessoais. Como ele perdeu uma irmã ainda bebê que não chegou a ser batizada, não conseguia imaginar que ela pudesse ficar para sempre nesse lugar, sem jamais ver a Deus.