Título: Cresce a desconfiança Turquia-UE
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/11/2006, Internacional, p. A19

A parceria já relutante entre a Turquia e a União Européia (UE) parece cada vez mais fadada a uma separação confusa, deixando muitos na Europa e nos EUA com uma pergunta incômoda: será que o grande e secular país muçulmano vai se voltar para o leste e não para o oeste depois disso? A pergunta tem conseqüências potencialmente significativas.

'Se a UE virar as costas para a Turquia, o grande perdedor será o Ocidente', adverte Mehmet Dulger, membro do partido governante Justiça e Desenvolvimento e presidente da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento. 'O Ocidente correria o risco de perder uma ponte vital com o mundo islâmico numa época em que ter essa ponte é mais importante que nunca.'

A desconfiança mútua está atingindo um ponto crítico. Na quarta-feira, a Comissão Européia (CE) divulgou um relatório criticando os progressos alcançados pela Turquia na adequação aos padrões europeus e qualificação para integrar a UE.

No próximo mês, durante cúpula da UE, os líderes poderão decidir pela suspensão das conversações com a Turquia sobre alguns problemas e mantê-las em outras áreas. Analistas políticos na Turquia dizem que essa rejeição intensificaria um retrocesso antieuropeu e faria o jogo dos nacionalistas e islâmicos, alguns dos quais já perguntam se o país não deveria rejeitar a Europa antes que esta rejeite a Turquia.

'Até pouco tempo, a Turquia vinha conseguindo adotar políticas pró-ocidentais porque a opinião pública acreditava que isso era do interesse nacional', diz Soner Cagaptay, diretor do programa de pesquisa turco no Instituto de Política do Oriente Médio, em Washington. 'Mas, com a UE sugerindo constantemente a exclusão da Turquia, os turcos estão questionando essa idéia.'

Na Europa, surgem doses parecidas de exasperação. 'A paciência com a Turquia está acabando', diz Joost Lagendijk, membro do Partido Verde holandês e co-presidente de uma comissão que trata de questões turcas no Parlamento Europeu. A questão não é apenas se as reformas da Turquia atendem aos padrões europeus, mas de cautela na admissão de um país pobre, com 70 milhões de habitantes, esmagadoramente muçulmano, com apenas 3% do seu território geograficamente na Europa.

Essas posições podem tornar-se mais rigorosas agora que foi divulgado o relatório da CE. O documento cita a recusa da Turquia em abrir seus portos à parte de língua grega de Chipre. O relatório também reclama do tratamento de minorias e de uma lei que limita a liberdade de expressão, criminalizando o 'insulto à 'turquidade''.

O chanceler turco, Abdullah Gul, disse sexta-feira que a lei sobre liberdade de expressão poderá ser reformada antes da cúpula européia. Mas, para algumas autoridades européias, a intransigência turca sobre Chipre, que é membro da UE, as deixa com poucas alternativas além de analisar uma suspensão parcial das conversações sobre o ingresso da Turquia no bloco.

Mesmo um colapso apenas parcial das conversações teria conseqüências de longo alcance. Limitada por Irã, Iraque e Síria, a Turquia secular é um símbolo poderoso de como democracia, capitalismo e islamismo podem coexistir. Num momento em que a Europa se defronta com a integração de milhões de muçulmanos, rejeitar a Turquia daria corda aos muçulmanos que afirmam que o Ocidente jamais os aceitará.

Alguns analistas acham que uma Turquia rejeitada olharia para o Oriente Médio, a Ásia Central e o Norte da África como alternativas à Europa e aos EUA. Uma pesquisa de opinião realizada em junho pelo Pew Research Center revela que o apoio dos turcos aos EUA caiu de 23% em 2005 para 12%. O apoio à UE recuou para 35% - a metade do que era há dois anos.

Cagaptay argumenta que o Partido Justiça e Desenvolvimento, que tem raízes religiosas, já vem orientando o país para o Oriente Médio e criticando os EUA. Ao mesmo tempo, diz ele, as censuras constantes da UE à Turquia fizeram o jogo de conservadores muçulmanos. Enquanto isso, o primeiro-ministro Recep Erdogan 'fica pregando a solidariedade e a consciência muçulmanas', disse Cagaptay. No início do conflito de julho e agosto no Líbano, Erdogan criticou Israel por tentar 'varrer os palestinos' do Líbano. Meses depois, convidou autoridades palestinas à capital, Ancara. Uma manifestação recente em Istambul contra Israel, que tem mantido sólidas relações com a Turquia, atraiu 100 mil pessoas. Antes da era Erdogan, diz Cagaptay, só algumas centenas teriam aparecido.

Para Kadir Uzun, um engenheiro turco de 21 anos que vive na Alemanha, o endurecimento da posição da UE está fazendo os turcos perguntarem se o mundo árabe não seria muito mais acolhedor. 'Muitos turcos acham que só estamos perdendo tempo com a UE, que jamais aceitará um país muçulmano', disse ele. 'Somos ocidentais demais para olhar para o Irã, mas também somos orientais demais para a UE.'

Muitos analistas e executivos turcos argumentam que olhar para o leste não é uma opção. 'Não queremos nos estender demais no Oriente Médio', diz Sinan Ulgen, um ex-diplomata turco em Trípoli. 'Ao mesmo tempo, os países que foram governados pelo Império Otomano - Egito, Jordânia, Síria - relutam ante a possibilidade de a Turquia ganhar um papel importante na região.' Além disso, o secularismo está inscrito em sua Constituição e a Turquia está inseparavelmente ligada econômica e estrategicamente ao Ocidente por meio, entre outras coisas, de um pacto comercial com a UE e da participação na Otan. Egemen Bagis, antigo consultor de Erdogan, diz que a Turquia ficará ancorada à Europa. 'Se as conversações com a UE fracassarem, poderemos ser uma democracia próspera de aparência ocidental fora da UE. Estamos fazendo as reformas não para a UE, mas para o povo turco.'