Título: Vice de Evo tenta unir dois mundos
Autor: Simon Romero
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/11/2006, Internacional, p. A25

À primeira vista, Álvaro García Linera parece um vice-presidente improvável para a Bolívia de hoje. O embaixador boliviano em Washington é um editor de revista que usa rabo-de-cavalo. O chanceler, um índio aimará, promove os benefícios da folha de coca para a saúde. A ministra da Justiça é uma ex-empregada doméstica. A ruptura abrupta com a tradição, uma das realizações de que o presidente Evo Morales mais se orgulha, tem se estendido para além da elite europeizada do país, até seus principais conselheiros.

García Linera é um produto dessa elite: um matemático bem educado, suave, e ex-professor universitário que cita Hegel casualmente. Mas logo se tornou a pessoa mais poderosa no governo ao lado do próprio presidente - e, mais importante, o que ele descreve como um 'intermediário cultural' numa nação dividida. Seu papel tem sido agir como ponte entre um governo que se esforça para aumentar os direitos de uma maioria indígena excluída durante séculos da política, e os que aqui se alarmam com a possibilidade de a Bolívia sofrer transformações radicais.

'Estou aqui para ajudar e servir ao primeiro presidente indígena da Bolívia', disse García Linera, de 43 anos, numa entrevista concedida num salão de reuniões adornado do palácio presidencial. 'É uma oportunidade de fazer história, do mesmo modo como se fez história na África do Sul há uma década e meia.' Ele viaja com freqüência pelo país, tentando aplacar as tensões criadas pelos crescentes protestos e bloqueios de estrada realizados pelos defensores e adversários do governo. TVs e jornais cobrem cada aparecimento do vice-presidente, competindo por entrevistas com o 'PI' (presidente interino), como ele é chamado quando Evo está fora. Mesmo quando Evo está na Bolívia, o presidente e o vice aparecem com freqüência juntos em eventos.

Eles são um estudo de contrastes. Evo, um ex-pastor de lhamas e plantador de coca, é um orador empolgado e informal conhecido por usar suéteres casuais ou roupas da tradição aimará mesmo em eventos oficiais. Já García Linera parece em cada centímetro o homem cujos ancestrais integraram a classe dominante colonial e se envolveram há dois séculos na liderança da luta de independência contra a Espanha.

Em público, o vice usa blazers bem cortados contrastando, nas reuniões, com os ponchos coloridos dos funcionários de fala aimará - ou quíchua. Ele não fala fluentemente o aimará nem o quíchua, embora diga que aprendeu a ler um pouco das duas línguas durante a sua educação por padres holandeses numa academia agostiniana em Cochabamba, a leste de La Paz. Na descrição de García Linera, a gramática aimará tem uma 'lógica kantiana'.

Apesar dessas diferenças, ou por causa delas, o presidente fez de García Linera a face pública do seu governo, revelando algo de sua astúcia política ao colocar na frente um professor universitário burguês enquanto faz um esforço intenso para tirar a população indígena da miséria. Evo tornou García Linera o principal interlocutor do governo com os EUA, enviando-o a Washington para pressionar pela renovação das preferências comerciais para exportadores bolivianos. Ao mesmo tempo, o presidente não poupa esforços para descriminar a produção de folha de coca.

'Estamos testemunhando uma luta pelo poder entre uma elite estabelecida e uma elite emergente', disse García Linera, usando mais uma vez a África do Sul como comparação. 'Temos aqui o mecanismo do apartheid, mas não as leis condizentes com ele. Modernizar nossa psicologia é um problema que temos há séculos.'

Após uma adolescência privilegiada em Cochabamba, García estudou matemática na Universidade Nacional Autônoma do México. Depois, voltou à Bolívia para se tornar um dos líderes do Exército Guerrilheiro Túpac Katari, um pequeno grupo rebelde de esquerda, no início dos anos 90. As autoridades o capturaram em 1992, deixando-o na prisão por cinco anos. Nesse período, mergulhou no estudo de textos históricos do período colonial da Bolívia e leu O Capital, de Karl Marx. 'O governo teve a opção de me matar, mas não o fez', disse ele. 'Um dos guardas da prisão é agora um capitão da minha guarda pessoal. Eu bebi nas águas do confronto e emergi como um homem de diálogo.'

Alguns bolivianos, em particular os de províncias onde é forte o sentimento separatista, não estão tão certos da reputação de García Linera como influência mediadora. Ele chocou muita gente em agosto ao conclamar os indígenas a defender o governo com punhos e fuzis.

'Álvaro não é um co-presidente, mas é algo parecido', disse Gonzalo Chávez, um economista e analista político da Universidade Católica em La Paz. 'Ele tem duas ou três faces. Um dia é um negociador, no outro é extremamente radical.'

Há quem especule que ele estaria testando as águas para sua ascensão à presidência algum dia. Mas ele diz que seu único foco é garantir a continuidade do governo, para que 'nossas ações possam ser estudadas com reflexão e admiração' no futuro. 'Tudo que quero é voltar para os meus livros. Este palácio, estas adjacências - sou indiferente a eles.'