Título: Em dois meses, lei contra marido violento já deixa cadeias lotadas
Autor: Rubens Santos e Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/11/2006, Vida&, p. A26

Por causa de uma lei chamada Maria da Penha, em vigor há 52 dias, a cela da Delegacia da Mulher de Goiânia ficou superlotada na semana passada, a porta de uma organização não-governamental de São Paulo foi mais procurada, o número de homens violentos denunciados quase dobrou em Porto Alegre e, em outros recantos do País, flagrantes de violência doméstica foram feitos em casas ricas, pobres, mal ou bem estruturadas.

Também como resultado da lei que pune com mais rigor parceiros agressores, cresceram as dúvidas sobre para onde enviá-los e multiplicaram-se os questionamentos sobre como oferecer assistência às famílias. Para especialistas, ficaram apenas dois fatos claros: houve um avanço, mas o combate à violência dentro de casa está longe de ser resolvido.

A maior modificação, divulgada até em novelas e programas de TV, é o fim do conhecido pagamento de cestas básicas por maridos que espancavam suas mulheres. Agora eles podem ser fichados na polícia, presos, afastados de casa e encaminhados para programas de ressocialização.

É o que poderia ter acontecido com o desempregado André Luiz Ribeiro da Silva, de 35 anos, que manteve anteontem sob a mira de um revólver a ex-mulher, Cristina Ribeiro, de 36 anos, dentro de um ônibus com outros passageiros reféns, no Rio. Após mais de dez horas, ele se entregou à polícia. Cristina já havia feito três boletins de ocorrência acusando o marido de agressões e violência - o primeiro deles em 2001.

Podem ser punições que, de acordo com quem trabalha na área, mais do que um uma mudança efetiva e de comportamento, exercem um efeito intimidador e estão levando agora mulheres como L.M.J, de 35 anos, e Z. P. S., de 60 anos, a esperarem na sala de atendimento da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Infância e da Juventude (Asbrad), no centro de Guarulhos, para contarem o que acontece entre as suas quatro paredes.

L.M.J. está lá porque o marido, com quem vive há 12 anos, alcoólatra e usuário de drogas, a expulsou de casa depois de espancá-la. 'Ele quer me usar e eu não quero, então ele me agride', conta. Mesmo assim, olhando para o chão, tenta defendê-lo: 'Ele sempre foi bom marido, trabalhador, nunca deixou faltar nada dentro de casa, mas de dois anos para cá se jogou de vez no álcool', diz. Os ciúmes dele são a principal causa das brigas.

Os 25 anos de experiência a mais da auxiliar de enfermagem Z.P.S. , de 60 anos, não impediram que ela se encontrasse na mesma situação. Com um marido violento e viciado em crack, ela foi espancada e expulsa de sua própria casa.

'Houve melhoras e a perspectiva é que a partir de agora a situação avance. Os homens se intimidam com a prisão, mas não é assim que as coisas mudam, até porque eles não vão ficar presos muito tempo', afirma Márcia Bucelli Salgado, dirigente das delegacias da mulher do Estado de São Paulo.

'A solução é reeducar homens e mulheres para viverem juntos. Sabe por quê? Já atendi médicas, advogadas, mulheres bem-sucedidas que aceitavam apanhar do marido e não tinham coragem de reagir. Elas e eles precisam reaprender a viver de uma maneira diferente da que foi ensinada. Sem submissão, e quando se fala em submissão não estamos falando só da mulher pobre. É uma mudança de mentalidade', ressalta.

Acostumada com os impasses dos conflitos domésticos, a advogada especializada no atendimento a mulheres Rejane Alexandre da Costa explica que esse comportamento nem sempre demonstra fraqueza. 'Essa defesa e insegurança são muito comuns porque existe uma relação e filhos envolvidos', diz.

Para ela, o ponto forte da lei é a exigência do acompanhamento psicossocial do agressor e sua remoção da casa. 'Morando debaixo do mesmo teto, eles entram em um ciclo de violência. Antes, a polícia não podia restringir a liberdade do agressor, agora pode', afirma.

A ênfase que a advogada faz é corroborada por pesquisas na área. Estudo feito pela Universidade de São Paulo (USP) em parceria com a Universidade Federal de Pernambuco, no ano passado, mostrou que 29% das paulistanas com parceiros regulares já haviam sido vítimas de violência. Dessas, 40% admitiram ter sofrido queimaduras, cortes e até perfuração dos tímpanos - para metade delas, as agressões começaram a partir dos 15 anos.

'A lei não deixa de ser uma ação afirmativa, mas violência contra mulher é um problema das famílias e da sociedade, tem repercussão na educação, na saúde', afirmou a ministra Nilcéa Freire, da Secretaria Especial de Políticas para Mulheres.

APLICAÇÃO

Num País onde a mulher corre mais riscos de ser agredida dentro de casa do que na rua, de acordo com a Organização Mundial da Saúde, e os maridos são os responsáveis por mais da metade dos atos de violência, segundo estudo da Fundação Perseu Abramo, os relatos nas delegacias se repetem.

No caso de F.O.S, de 27 anos, de Goiânia, antes de receber socos e pontapés, houve intimidações e brigas. 'Meu filho Gérson tentou me ajudar e apanhou também', disse. 'Aí que ele bateu mesmo, xingou, ameaçou colocar fogo na casa e disse que mataria a mim e o menino'. No mês passado, ela procurou a delegacia e a Justiça determinou o afastamento de Rinaldo do lar e da convivência familiar.

Em São José do Rio Preto, no interior de São Paulo, dois homens já foram julgados com base na lei. Uma das decisões, do juiz Robledo Matos Alves Moraes, determina que Adécio Silva, de 27 anos, não chegue a menos de 100 metros da ex-companheira.

Segundo Moraes, a sentença é uma 'medida protetiva' prevista na Lei Maria da Penha. Silva tentou esfaquear a ex-mulher. O juiz, porém, ressalva: ' É preciso aparelhamento para que a aplicação da lei seja viável.'

'São Paulo, Mato Grosso e vários Estados já criaram juizados para ter a função de Vara Criminal e de Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Isso é muito importante. E ainda vamos ver aflorar os resultados, mesmo que lentamente', diz, com otimismo, Silvia Pimentel, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e vice-presidente do Comitê da Convenção da ONU sobre Eliminação das Formas de Discriminação contra a Mulher.