Título: Batalhas individuais têm efeito borboleta
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Fonte: O Estado de São Paulo, 04/11/2006, Internacional, p. A22

Este é o paradoxo da democracia americana e, mais ainda, destas eleições de meio de mandato: elas são locais, provinciais. Repousam nas escapadas homossexuais do senador Mark Foley, da Flórida; na utilização pelo senador pela Virgínia, George Allen, do termo ¿macaco¿, insulto tenebroso de caráter racista, referindo-se a um voluntário trabalhando para seu oponente; em jogo também a controvérsia sobre o casamento gay nos Estados de Dakota do Sul, Carolina do Sul e Wisconsin. A maioria republicana no Senado será perdida ou mantida dependendo da credibilidade das promessas do governo Bush em Nova Jersey, Missouri, Tennessee e Virgínia.

Em resumo, tudo se decidirá de acordo com as contendas locais. No entanto, estas são as únicas eleições no mundo com uma importância verdadeiramente global. É a única batalha eleitoral da qual, nós sabemos, depende o destino do planeta.

Por quê? Porque, se hoje nos Estados Unidos existem os ¿swing states¿ (Estados onde os eleitores não estão seguros quanto a seu voto), há também ¿swing issues¿ (temas sobre os quais também há muita hesitação) - há, se preferirmos, questões de importância colossal das quais depende nada menos do que a guerra, a paz ou a sobrevivência do mundo. E, com relação a elas, a opinião dos EUA - e, portanto, do próprio governo - é hesitante, oscila e pode, a qualquer momento, de acordo com a relação de forças resultante das urnas, pender para um lado ou outro.

Se, por exemplo, os democratas conquistarem a Câmara, é muito provável que eles iniciem uma série de inquéritos e façam novas propostas relacionadas às inúmeras medidas controvertidas adotadas pela administração Bush nestes seis anos, atraindo novamente a atenção da sociedade para a questão da legalidade das prisões secretas e transferências de detentos para outros países (as chamadas ¿extraordinary renditions¿) e para a corrupção verificada entre alguns responsáveis americanos no Iraque e no Afeganistão. Então, creio, o presidente repentinamente descobrirá que a noção de ¿combatente inimigo¿ é anticonstitucional e fechará a prisão da base de Guantánamo, em Cuba. Que vitória para a democracia! Que derrota, em conseqüência, para os propagandistas do ódio e do terror!

A guerra do Iraque não cessará por encanto. Contudo, uma administração Bush tendo à frente uma minoria republicana no Congresso seria obrigada formar alianças de circunstância e às vezes até precisará levar em conta opiniões discordantes, particularmente aquelas dentro do partido. Vozes se levantarão, até mesmo no campo republicano, pedindo que se inicie o debate, que faz falta há quatro anos, sobre o grande erro estratégico que foi a intervenção em Bagdá. Com a palavra liberada, a imaginação desbloqueada e os ferrolhos ideológicos finalmente começando a ceder, esboços de soluções e até possibilidades de saída acabarão surgindo.

Acredito, por outro lado, que uma maioria democrata no Senado e na Câmara, mesmo que não mude em nada os sentimentos antiamericanos na Europa, privará os governos deste álibi providencial para sua passividade e seu espírito de contemporização: o espantalho dos desmandos de Bush. Esses governos serão obrigados - ou isso contribuirá para obrigá-los - a ter uma participação mais ativa no combate global contra o fascismo islâmico, que é o desafio do nosso tempo.

Sabe-se que na França, por exemplo, existe uma tentação para suspender ou reduzir a cooperação no terreno com as forças antiterroristas dos Estados Unidos, cooperação que, depois do 11 de Setembro, jamais cessou. Mas uma derrota pungente da equipe de Bush nestas eleições não tornará fácil justificar uma decisão desse tipo do outro lado do Atlântico. O presidente francês, seja ele quem for, ante um governo americano que represente um amplo espectro da opinião pública, terá dificuldade para explicar a retirada de seus comandos do Afeganistão.

Em outras palavras, uma Casa Branca obrigada a se engajar, como querem os democratas, numa forma de multilateralismo colocará a Europa contra a parede de modo bem mais vigoroso do que as fanfarrices, os apelos à cruzada ou as pregações neocristãs dos últimos anos.

Uma vitória dos defensores do aborto em Dakota do Sul ou dos adversários da venda livre de armas em Ohio obrigará a Casa Branca, sem ficar desprestigiada ou concordar explicitamente com os argumentos do ex-futuro presidente Al Gore, a reconsiderar suas posições irresponsáveis relativas ao Protocolo de Kyoto e à contribuição americana para a redução dos gases de efeito estufa. Com lobby do petróleo ou não, Bush não conseguirá mais fingir ignorar que os americanos também têm parte na batalha pela sobrevivência do planeta do qual somos todos tributários.

Em resumo, pequenas causas, grandes efeitos.

Batalhas individuais, efeito borboleta colossal.

Saberemos muito em breve. As duas vitórias dos maníacos dos ¿valores morais¿, em 2000 e 2004, nunca foram um movimento, mas uma batalha da retaguarda.

A tendência sustentada dos últimos 40 anos de história americana - rumo a uma vitória dos direitos civis, da democratização do Sul, do abrandamento das severas regras morais - demonstra que o fenômeno Bush é, sobretudo, um último combate, a derradeira e terrível arrancada da besta que sabe que está ferida e joga sua última cartada, e que as razões para que se tenha esperança superam infinitamente os motivos de inquietação.