Título: Ortega paz e amor prepara volta
Autor: Jens Glüsing
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/11/2006, Internacional, p. A26

Daniel Ortega, líder do movimento sandinista da Nicarágua, deseja ser presidente do país de novo após as eleições de hoje. Para promover sua causa, o ex-guerrilheiro está fazendo campanha em roupas civis como um democrata reformado.

Ortega chega num utilitário esportivo Mercedes-Benz cinza-prata precedido por um enxame de guarda-costas de óculos escuros e carregando walkie-talkies. Eles abrem caminho rudemente até o centro de conferência na capital nicaragüense, Manágua, um edifício pomposo de aço e vidro, ¿Seja bem-vindo, Comandante!¿ exclamam os porteiros. Eles ficam em posição de sentido enquanto Daniel Ortega, 60 anos, entra no edifício, e até os policiais que o acompanham saúdam o ex-presidente.

Para eles, o antigo revolucionário ainda é ¿El Jefe¿ (o chefe).

O comportamento rude, arrogante, de seu entourage contrasta fortemente com o do líder sandinista. Ortega abriu mão do título de Comandante, parece mais civil que militar, usando calça jeans e camisa branca, e já está sendo ridicularizado por seus detratores como ¿Daniel paz e amor¿.

Seu grande sorriso visa, aparentemente, a exprimir cordialidade, mas ele sai duro e afetado. Ortega aperta qualquer mão que lhe estendam, enquanto a canção de John Lennon Give Peace a Chance sai dos alto-falantes.

A mulher de Ortega, Rosario Murillo, uma poeta, escolheu esse apelo musical à irmandade mundial, e agora ele é tocado em toda aparição pública do veterano revolucionário. Ela está encarregada da estratégia da campanha, que, no seu entender, ajudará seu marido a vencer a eleição presidencial já no primeiro turno de hoje. Foi também Rosario que escolheu o rosa-choque como cor de fundo dos cartazes da sua campanha, e ela manda espalhar pétalas de flores cor-de-malva em cada compromisso de campanha. O resultado disso é que o líder sandinista, criticado no passado por sua atitude excessivamente machista, hoje parece muito mais um romântico.

Rosario está tentando refazer a imagem de líder revolucionário autoritário do marido. Ortega já dirigiu o país antes, depois da queda da ditadura de Anastasio Somoza em 1979. Como líder do regime sandinista, ele era obrigado a desafiar o então presidente americano, Ronald Reagan, e a guerrilha dos Contras financiada pelos Estados Unidos. Desde que perdeu a eleição de 1990 por larga diferença para a democrata-cristã Violeta Chamorro, Ortega fez três tentativas malsucedidas de voltar à presidência.

FAVORITISMO

Mas suas perspectivas são boas desta vez. Ele só precisa de uma maioria relativa de 35% para assegurar a presidência sem a necessidade de um segundo turno. O adversário que seria mais difícil, Herty Lweites, o popular ex-prefeito de Manágua, morreu de ataque cardíaco em julho. Desde então, todas as pesquisas de opinião mostram Ortega na frente.

A oposição está dividida, com dois candidatos concorrendo pelo Partido Liberal Constitucional. O banqueiro Eduardo Montealegre, um tecnocrata formado em Harvard, é o candidato favorito dos EUA. Seu rival, José Rizo, é visto como testa-de-ferro do ex-presidente Arnaldo Alemán, o homem forte dos liberais. Alemán, que conseguiu desviar U$ 100 milhões para o exterior durante sua presidência, foi sentenciado a 20 anos de prisão e atualmente vive sob prisão domiciliar.

Mas Alemán não está de maneira nenhuma enfraquecido. Muitos adversários políticos acusam Ortega de ter feito um acordo com os liberais para preencher cargos políticos-chave com membros dos dois principais partidos do país.

De fato, o candidato conquistou o apoio de ex-adversários com ofertas por baixo do pano. No início de setembro, um ex-líder dos rebeldes Contras, Jaime Morales, deu seu apoio a Ortega, que em troca nomeou Morales seu candidato à vice-presidência.

Durante a revolução no país, os sandinistas tomaram a casa de Morales, e Ortega a transformou em sua residência particular.

`COMETEMOS MUITOS ERROS¿

Hoje, o líder sandinista está pregando a ¿reconciliação¿. Mas muitos nicaragüenses mais velhos se recordam das dificuldades que sofreram sob os sandinistas - as longas filas na frente das lojas, o recrutamento forçado e a corrupção generalizada.

¿Cometemos muitos erros¿, admite Ortega no centro de conferências de Manágua. ¿Mas isso faz parte do passado.¿ Ortega falou para uma audiência de 200 mulheres feirantes. O Comandante Daniel fala manso enquanto sua mulher, Rosario, se faz de moderadora. Ela tingiu o cabelo de vermelho vivo e exibe jóias de prata.

O candidato não dá entrevistas e se recusou a participar de um debate na televisão. Ortega teme ser indagado sobre o passado e sobre seu suposto pacto com Alemán. Um tópico absolutamente tabu é a relação de Ortega com o presidente venezuelano Hugo Chávez.

A relação em si é excelente. Há poucas semanas apenas, o venezuelano enviou aos sandinistas um navio petroleiro carregado de óleo diesel.

Chávez sonha com um eixo Havana-Caracas-Manágua, uma visão que atrai inveterados sandinistas que gostariam de ver a Nicarágua se tornar novamente um bastião de antiamericanismo. ¿Esperamos ter Fidel Castro e Chávez em nossa posse¿, diz um dirigente sindical a Ortega.

Mas esta é uma questão que o candidato preferiria evitar. Durante as eleições presidenciais no Peru, México e Equador, candidatos populistas de esquerda foram prejudicados por suas relações com Chávez. Os eleitores moderados se assustam com a perspectiva de uma aliança com o venezuelano radical.

Respeitado, mas não celebrado, Ortega é controvertido mesmo dentro de seu partido. Eliane Sonariba, de Manágua, diz que certamente ¿poderia sonhar com um candidato diferente¿, e só está fazendo campanha para Ortega ¿por razões de disciplina partidária e senso de obrigação¿.

RESPEITADO, NÃO CELEBRADO

Muitos na base sandinista sentem a mesma coisa. O ex-presidente é respeitado, mas não exatamente celebrado. Ex-companheiros revolucionários preeminentes, como o poeta Ernesto Cardenal e o respeitado escritor Sergio Ramírez, tiveram uma desavença com Ortega, e suspeitam de sua súbita transformação em democrata. ¿Ortega está interpretando um papel¿, diz Ramírez, um co-fundador do Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). Ele faz advertências contra a fraude eleitoral caso a votação seja apertada. ¿O homem é capaz de tudo¿, diz ele.

Mas a eleição será fiscalizada. Observadores da União Européia estarão presentes, especialistas da Organização dos Estados Americanos (OEA) já chegaram e o Centro Carter, do ex-presidente americano Jimmy Carter, também pretende monitorar a eleição.

Um retorno dos sandinistas seria um pesadelo para Washington. Aliás, o embaixador americano Paul Trivelli já anunciou que os EUA pretendem reduzir a ajuda à Nicarágua se Ortega vencer a eleição.

Essas ameaças podem se mostrar contraproducentes. As tentativas americanas de envolvimento ferem o sentimento de orgulho nacional dos nicaragüenses e os adversários de Ortega não querem ser vistos como vassalos de Washington. Ramírez, o ex-camarada de armas de Ortega, diz: ¿O embaixador americano é o seu melhor cabo eleitoral.¿