Título: Na noite, tarja preta vira estimulante
Autor: Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/11/2006, Vida&, p. A27

Sexta-feira, 23 horas, Alex*, de 18 anos, e cinco amigos da mesma idade se encontram no condomínio onde moram, no Morumbi, para ir a uma danceteria na Vila Olímpia. Calça jeans, camisa, boné e cartão de crédito, eles vão parar também em uma loja de conveniência para comprar bebidas. Antes, Alex tira uma cartela do bolso e dá três comprimidos para cada um: ¿Já tomei até seis desses com álcool. Fiquei superligado.¿

A cartela contém metilfenidato, um psicoestimulante tarja preta, vendido com receita especial, indicado principalmente para tratamento de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Justamente por isso, e pelo valor do produto, de R$ 180 a R$ 240, em média, eles lançam mão de várias maneiras para adquiri-lo. Até parece a descrição de alguém que compra drogas ilegais.

¿Cada vez é de um jeito. Meu primo toma porque precisa, e, às vezes, pego dele. Ou compro pela internet. Tem ainda quem tem pai médico e consegue escondido¿, diz.

O relato, segundo especialistas, tem se tornado cada vez mais comum com a popularização do TDAH, mais divulgado e diagnosticado nos últimos anos, inclusive em escolas. Para se ter uma idéia, a venda de remédios para o problema cresceu 930% nos últimos cinco anos, segundo levantamento do Instituto Brasileiro de Defesa do Usuário de Medicamentos.

Assim, com mais jovens diagnosticados e medicalizados, o remédio se tornou também popular entre quem não precisa, mas busca o efeito estimulante. Em escolas de classes média e alta, em filas de danceterias e bares, as cartelas aparecem nos bolsos e mochilas.

Quem toma fica desperto por mais tempo. Ao ser misturado ao álcool, o remédio potencializa seus efeitos. ¿O metilfenidato, por via oral, diminui o cansaço e a sonolência e aumenta a concentração em indivíduos que não têm o déficit¿, explica o psiquiatra Paulo Mattos, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Associação Brasileira de Déficit de Atenção.

¿Existe esse perfil de adultos e adolescentes que tomam o medicamento para ir a uma festa, para sair. Já vi casos nos quais a pessoa dilui em água e injeta na veia¿, conta ele, dizendo que percebeu um aumento nesse uso ¿recreativo¿ do remédio.

O médico participou, há duas semanas, de discussões sobre as indicações e restrições quanto ao uso do remédio no Congresso Brasileiro de Psiquiatria, em Curitiba. Um dos temas abordados foi o uso exagerado do medicamento, comercializado com dois nomes no mercado brasileiro: Ritalina e Concerta.

¿Sei que é um estimulante e que, para quem não tem TDAH, tira o sono e a fome. É bom para sair¿, afirma Luis*, de 17 anos, estudante do terceiro ano do ensino médio de um colégio tradicional de São Paulo. ¿É supercomum, porque sempre tem alguém que conhece quem tem. O máximo que eu já vi foi gente que tomou e nem sentiu diferença, mas até agora nunca deu efeito ruim¿, diz, quando questionado sobre os riscos.

Não é bem assim. O metilfenidato, explicam psiquiatras, tem sua segurança e eficácia comprovadas quando ingerido sob orientação e em indivíduos diagnosticados com TDAH. Além da perda de apetite e da insônia, podem ocorrer dores abdominais, cefaléia e tontura.

Médicos afirmam serem raros os casos de dependência quando o remédio é bem administrado. Mas isso não pode ser garantido quando a ingestão ocorre sem controle. Além disso, o FDA, órgão que regulamenta a venda de medicamentos nos Estados Unidos, fez um alerta sobre riscos de problemas cardiovasculares.

¿Tomo para sair, antes da balada. Um comprimido ou dois antes. Depois que passa o efeito, bebo alguma coisa e tomo outro¿, diz a artista plástica Livia*, de 30 anos. Ela diz conhecer quem compre o metilfenidato como se fosse droga (ecstasy ou ácido), ou seja, de maneira ilegal. No seu caso, tem amigos médicos. ¿Peço e me dão; mesmo sabendo que não é muito correto, eu tomo.¿

¿Temos acompanhado esse uso sem necessidade. Infelizmente isso está acontecendo¿, diz a psiquiatra Cláudia Szobot, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).