Título: Conflitos regionais dominam debates
Autor: Ariel Palacios
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/11/2006, Economia, p. B11

A 16ª Cúpula Ibero-Americana termina hoje com a assinatura de um documento pedindo que os emigrantes da região recebam melhor tratamento por parte dos países desenvolvidos. Mas não foi essa a discussão que mais ocupou os chefes de Estado e Governo que participaram do encontro. O tema foi ofuscado pelos conflitos bilaterais que assolam a região.

Além disso, a cúpula foi marcada por um esvaziamento sem precedentes. Oito dos 22 chefes de Estado e Governo participantes cancelaram suas presenças. Entre as ausências, as mais comentadas foram as dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, a do venezuelano Hugo Chávez e do peruano Alan García. Tudo indicava que o argentino Néstor Kirchner, que chegou tarde à cúpula, sairia antes do fim da reunião, sem esperar a assinatura do documento final.

Ontem o presidente da Bolívia, Evo Morales, mencionou o respeito aos imigrantes em seu discurso. Segundo Evo, quando havia migrações norte-norte ou norte-sul, não havia muros, deportações ou barreiras migratória como as atuais. Os imigrantes que vieram do norte para o sul foram bem recebidos, embora ¿tenham saqueado os recursos naturais e tomado milhares de hectares¿.

Mas foram os conflitos regionais que sobressaíram como cenário dos debates da 16ª Cúpula Ibero-Americana. No momento, o maior de todos é a ¿guerra da celulose¿, entre a Argentina e o Uruguai. O pivô da crise é a construção de fábricas de celulose no Uruguai, na fronteira entre os dois países. O conflito arrasta-se há mais de um ano sem solução. Kirchner exige a suspensão das obras, pois considera que causarão um colapso ambiental e econômico. O presidente do Uruguai, Tabaré Vázquez, defende as fábricas, alegando que não poluirão e são necessárias à recuperação da economia do país.

Desde sexta-feira, milhares de argentinos da área da fronteira e ambientalistas bloqueiam uma das três principais pontes entre os dois países. Tabaré queria se reunir com Kirchner para discutir o caso, mas o argentino evitava o diálogo. Ontem Kirchner pediu ao rei da Espanha, Juan Carlos, que atue como ¿facilitador do necessário e querido entendimento entre ambos os países¿, em busca de uma saída para o conflito.

O governo uruguaio, melindrado pela ausência de Lula (em Montevidéu considerou-se que ele evitou atuar como mediador no conflito com a Argentina para não irritar Kirchner), também tem problemas com o Brasil. Tabaré reclama de barreiras à entrada do arroz uruguaio. E dispara contra a Argentina, que complica a entrada de bicicletas uruguaias.

No Mercosul, também existem problemas entre Argentina e Brasil. Neste caso, Kirchner insiste nas restrições aos eletrodomésticos brasileiros, argumentando que as indústrias argentinas precisam se proteger das ¿invasões¿ desses produtos. De quebra, Uruguai e Paraguai sofreram pressões do Brasil e da Argentina para não assinarem tratados de livre comércio com os Estados Unidos, ameaçando-os de expulsão do Mercosul.

O Brasil também está mergulhado em um clima de tensão com a Bolívia por causa da nacionalização dos hidrocarbonetos implementada por Evo Morales e o aumento do preço do gás exportado ao mercado brasileiro (ler mais nas páginas B6 e B7). ¿Graças à nacionalização, a Bolívia vai poder contar com recursos para conter a emigração boliviana¿, disse Evo ontem. Pelo menos 5 mil pessoas por semana saem do país para tentar uma vida melhor no exterior.

Os conflitos também sobram na costa do Pacífico, onde o Peru anunciou que era de sua propriedade parte do território marítimo do norte do Chile, rico em pesca. Michelle Bachelet reagiu, afirmando que esses 35 mil quilômetros quadrados são chilenos. A tensão permanece, sem solução a curto prazo.

O peruano Alan García também se desentendeu com Chávez. O venezuelano, meses atrás, irritado com a política comercial pró-EUA que García prometeu, o chamou de ¿sem-vergonha¿ e ¿demagogo¿. García respondeu chamando-o de ¿cacique petroleiro¿ e ¿tiranozinho¿. O venezuelano ameaçou com retaliações comerciais. Chávez também tem problemas com o México, por causa da defesa que o presidente Vicente Fox faz da Área de Livre Comércio das Américas (Alca).

Os conflitos também fazem parte da relação entre o Chile de Bachelet e a Bolívia de Evo. Este tem gás de sobra, mas quer um acesso ao mar que não tem desde a Guerra do Pacífico (1879-1883), quando perdeu território para o Chile, que não tem gás e sofre problemas no abastecimento proveniente da Argentina (por decisão unilateral de Kirchner). O Chile está disposto a comprar gás da Bolívia, mas Evo só aceita vender se Bachelet sentar à mesa de negociações para conversar sobre o acesso ao mar.