Título: Os preconceitos da Receita
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/11/2006, Notas e Informações, p. A3

Recordes de arrecadação como os anunciados pela Receita Federal são motivo mais do que suficiente para irritar o contribuinte. Embora perca parcelas cada vez maiores de sua renda para alimentar o Fisco, ele recebe do setor público, em troca, serviços de qualidade cada vez pior. Esses serviços, em certos casos, são tão precários que o contribuinte é forçado a gastar outra fatia de sua renda para dispor daquilo que o Estado lhe deveria oferecer, mas não oferece - como segurança e saúde. Mas o pior, para o estado de ânimo desse contribuinte esfolado pelo Fisco, talvez seja o tratamento preconceituoso e desrespeitoso que recebe dos responsáveis pela coleta dos impostos.

¿Privilegiados egoístas¿ foi uma das expressões empregadas pelo secretário-adjunto da Receita Federal, Ricardo Pinheiro, para se referir aos que, com razão, reclamam a correção da Tabela do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF). ¿Privilegiados¿, porque apenas 7% da população ativa paga o IRPF. Por simples omissão, ao não mexer uma palha para atualizar a tabela, e justificando sua inércia com a alegação de que não existe mais indexação na economia brasileira, a Receita impõe aumentos constantes na tributação sobre a renda de boa parte das pessoas físicas.

O IRPF tem alíquotas diferentes, maiores para rendas mais altas. Como a renda dos contribuintes tende a crescer, em decorrência de aumentos salariais e reajustes resultantes de acordos coletivos, parcelas cada vez maiores desses rendimentos são tributadas por alíquotas mais altas. O resultado é o aumento da carga tributária, com o sacrifício da classe média. A correção da Tabela do IRPF evitaria que, em razão da melhora de sua renda, o contribuinte fosse punido com uma tributação proporcionalmente maior.

Para o alto funcionário da Receita, porém, tudo não passa de ¿paranóia das viúvas da indexação, que querem atualização todo ano¿ e do ¿egoísmo de uma meia dúzia que quer um proveito pífio individual¿.

Desse conjunto de observações que denotam uma visão enviesada da massa de contribuintes só se salva uma: em períodos de inflação baixa, os ganhos que a correção da tabela traz não são expressivos. No entanto, ainda que sejam ¿pífios¿, eles são, antes de tudo, justos, pois evitam o aumento disfarçado da carga tributária.

O que dados recentes mostram é que, mesmo sendo ¿pífios¿ seus resultados quando considerados em cada ano, mantida por muitos anos essa artimanha tributária tem um impacto forte sobre as finanças de uma parcela expressiva dos contribuintes. Trata-se da classe média, a qual, como mostrou recente reportagem publicada pelo Estado, paga cada vez mais impostos e gasta cada vez mais para obter serviços que deveriam ser oferecidos pelo Estado, como contrapartida aos impostos que arrecada. Pouco numerosa, a classe média responde por cerca de 60% da arrecadação do IRPF.

É a classe média, que também paga outros tributos, a responsável por boa parte dos recordes de arrecadação tributária. Na esfera federal, o total arrecadado em outubro foi de R$ 36 bilhões, o valor mais alto deste ano e o segundo melhor resultado mensal de toda a história.

Os maus-tratos da Receita a esse segmento da população não se limitam a declarações. É prática corrente da Receita atrasar a restituição do Imposto de Renda recolhido a mais pelas pessoas físicas, em sua maioria pertencentes à classe média. As regras atuais permitem que, em razão de dúvidas ou suspeitas, a Receita retenha por até cinco anos as restituições. Mas, se aproximar o fim do prazo legal, a Receita libera as restituições em bloco, sem distinguir o contribuinte honesto do sonegador contumaz, e sem nenhuma explicação para a demora. Projeto aprovado no Senado e agora na Câmara obriga a Receita a restituir o valor no mesmo ano em que a declaração foi entregue. Em caso de irregularidade, a Receita poderá lançar o imposto devido.

Agir com justiça nessa questão não é, como sugere o secretário-adjunto da Receita, comprometer a responsabilidade fiscal. É cumprir, mais do que uma obrigação comezinha, o dever de servidor público.