Título: Adeus às ilusões no Iraque
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/11/2006, Notas e Informações, p. A3

Três anos e meio ¿desastrosos¿ - como o primeiro-ministro britânico Tony Blair acaba de admitir, referindo-se aos resultados da aventura iraquiana da qual é sócio menor de George W. Bush - finalmente dissiparam nos Estados Unidos a esperança de que o legado da invasão poderia ser o advento de um regime democrático em Bagdá, que servisse de exemplo para o mundo árabe. Ou por ingenuidade dos intelectuais neoconservadores bem-postos em Washington, adeptos do uso da força para propagar no Oriente Médio a fé nos valores políticos ocidentais, ou para cobrir com uma demão de grandeza os motivos crassos que levaram os EUA a atacar o país de Saddam, quando se comprovou a inexistência das armas de destruição em massa invocadas para justificar a invasão, o bushismo se aferrou à miragem de que, depois da tormenta, surgiria um arco-íris com o pote de ouro: a substituição de uma feroz autocracia por uma democracia jeffersoniana, numa parte do mundo onde não há mínimas condições culturais para que ela medre.

Houve um momento em que isso até pareceu possível. No ano passado, pelo voto livre e secreto, os iraquianos elegeram um governo de transição, aprovaram uma Constituição e definiram o primeiro governo efetivo do país, fruto de eleições competitivas, o do primeiro-ministro Nuri al-Maliki. Os vitoriosos do processo eleitoral, porém, foram as facções mais radicais da maioria xiita. Combinaram-se controle político e ações de extermínio de suas milícias contra a minoria sunita a que pertence Saddam. Ao terrorismo da insurgência antiamericana somou-se o terrorismo sectário, igualmente selvagem. A degradação dos conflitos internos em guerra civil produziu três conseqüências. Em primeiro lugar, reduziu praticamente à impotência as forças de ocupação, obrigadas a exercer ao mesmo tempo funções militares e policiais, com fracassos em profusão e baixas sucessivas.

Segundo, acabou com o que pudesse haver de convicções democráticas entre os iraquianos, sem distinção. Como atesta o correspondente do New York Times em Bagdá, John F. Burns, em artigo transcrito domingo neste jornal, o povo quer ¿um líder forte que, sem ser um assassino implacável como Saddam, enfrente os insurgentes e os esquadrões da morte, os seqüestradores e as gangues criminosas, e que, se necessário, passe por cima das sutilezas do processo legal e dos direitos humanos, por cima das instituições democráticas que os EUA tentaram implantar, se ao menos ele puder impor a paz¿. Em terceiro lugar, o caos e a morte de seus compatriotas levaram os americanos a uma conclusão realista: com ou sem vitória armada, com ou sem democracia, a prioridade é sair do Iraque. Foi o que afirmou, em alto e bom som, o eleitorado que devolveu ao Partido Democrata o comando do Capitólio.

Os republicanos, por sua vez, se dividem em duas facções. Uma, a do próprio Bush, ainda resiste a bater em retirada. Preferiria antes a substituição do omisso Maliki por um ¿governo de salvação nacional, conduzido por um homem forte xiita¿, informa Burns. A segunda facção, da velha guarda de Bush-pai, liderada pelo ex-secretário de Estado James Baker, busca a fórmula da clássica saída honrosa. O essencial é que para os dois grupos a estabilidade passou a ter precedência sobre o projeto de um Iraque democratizado à ocidental. Os planos democratas caminham até certo ponto no mesmo rumo: retirada gradual, a começar logo; separação informal de xiitas, sunitas e curdos, sob um regime federativo flexível; divisão o quanto possível eqüitativa entre eles dos lucros do petróleo; e - anátema para Bush - abertura de diálogo com a Síria e o Irã para obter um mínimo de pacificação no país vizinho de ambos.

Baker já teria mantido contatos com representantes de Damasco. E, realista dos realistas, o ex-secretário de Estado Henry Kissinger pondera que ¿uma diplomacia que exclua os adversários é uma clara contradição¿. O obstáculo é Bush. ¿Só se democratas e republicanos conseguirem o feito heróico de se unir¿, argumentou domingo no New York Times o colunista Frank Rich, ¿poderá a América ser salva de um presidente que, apesar de todas as suas professadas fantasias sobre democracia no Oriente Médio, se recusa a se render ao veredicto da democracia em seu próprio país.¿