Título: Hannah Arendt
Autor: Celso Lafer
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/11/2006, Espaço Aberto, p. A2

Hannah Arendt faleceu em 1975 e o centenário de seu nascimento ocorreu em outubro deste ano. Em 1965, quando fui seu aluno na Universidade de Cornell, nos EUA, ela era uma pensadora conhecida, mas controvertida. Tinha inegável presença na vida universitária e intelectual norte-americana e européia desde a publicação, em 1951, de Origens do Totalitarismo. Havia, no entanto, muito desacordo em torno da sua obra. Prevalecia um desconforto em relação a uma personalidade polêmica que não se enquadrava nem nos cânones políticos usuais nem no âmbito das disciplinas acadêmicas.

Hoje a situação é completamente diferente. O centenário do seu nascimento vem sendo celebrado em todos os quadrantes culturais, na esteira da sua crescente fortuna crítica, que, nos últimos 25 anos, veio aumentando de maneira avassaladora, inclusive em nosso país. Atualmente há um consenso em considerar Hannah Arendt uma das grandes pensadoras do mundo contemporâneo. Para isso contribuiu o objetivo recorrente do seu percurso voltado para buscar compreender o século 20, uma época em que o destino de incontáveis seres humanos se viu determinado em escala inédita pelos que sofreram a História em função da Política. Foi o seu caso, como judia alemã confrontada com a ascensão do nazismo.

Para Arendt, compreender era uma atividade infindável, por meio da qual, em constante mudança e variação, aprendemos a lidar com a nossa realidade, para tentarmos nos sentir em casa no mundo. No exercício desta atividade atribuiu grande importância à experiência e à narrativa.

Em Entre o Passado e o Futuro, afirma que, numa época em que o ineditismo dos eventos tornou precários os conceitos, o seu pressuposto era de ¿que o próprio pensamento emerge dos incidentes da experiência viva e a ela deve permanecer ligado, já que são os únicos marcos por onde obter orientação segura¿. Entende, deste modo, que subjacentes às teorias existem estórias e incidentes. O seu artigo-relato de 1943 sobre a experiência dos refugiados que perderam o seu lugar no mundo é o lastro concreto do conceito do direito a ter direitos proposto em Origens do Totalitarismo - conceito que desenvolvi em meu livro A Reconstrução dos Direitos Humanos - Um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt.

A experiência, no entanto, só se torna relevante se for articulada e transmitida, pois é unicamente desta maneira que o seu significado pode aflorar. Lembrar e transmitir é, ao mesmo tempo, um olhar para trás e um pensar para a frente. ¿Estórias¿ evocam a experiência e ensejam o despontar do pensamento. Daí, para Hannah Arendt, o poder ao mesmo tempo redentor e esclarecedor da narrativa.

A importância da narrativa na organização do pensamento político de Hannah Arendt é o tema de livro de 2001 de Julia Kristeva. Esta importância deriva do intento arendtiano de elaborar uma teoria política a partir de ¿estórias¿ e experiências, e não do léxico tradicional. É o que ela chamou pensar sem o apoio do corrimão das categorias herdadas, freqüentemente permeadas por preconceitos filosóficos e distorções ideológicas. Foi admiravelmente bem-sucedida na sua empreitada, pois tinha um olhar certeiro para perceber o novo e uma excepcional capacidade de refletir com abrangência a partir da exemplaridade do concreto. Daí a originalidade da sua contribuição para o entendimento do totalitarismo, da ação, da violência, da desobediência civil, da mentira na política, da liberdade, da banalidade do mal, da descartabilidade do ser humano.

A narrativa do século 20 permeia de maneira dispersa toda a obra de Hannah Arendt. É possível unificá-la? No prefácio de 1961 a Entre o Passado e o Futuro ela aventa que uma possibilidade seria a de uma biografia imaginária de uma pessoa que viveu as experiências significativas do século e parou para pensá-las. Este exercício de imaginação, de tornar presente por uma aproximação metafórica uma narrativa deste tipo, foi a proposta do seu curso de pós-graduação intitulado Experiências Política do Século XX, do qual fui aluno em 1965.

As experiências que Hannah Arendt discutiu foram: a 1ª Guerra Mundial, o pós-1ª Guerra Mundial; a Guerra Civil Espanhola; a Rússia comunista; a Alemanha nazista; a 2ª Guerra Mundial e dois julgamentos do segundo pós-guerra - o caso Alger Hiss, que lidava com o macarthismo nos EUA, e o caso Oppenheimer, que tratava da responsabilidade dos cientistas diante da bomba atômica.

A bibliografia do curso incluía, como era freqüente na sua obra, romances, poesias, autobiografias, textos de cartas, transcrições de processos, além de livros de análise histórica e política. O seu objetivo foi tornar visível o invisível e fazer sensível o abstrato para abrir caminho para o conhecimento de correspondências. Estas, ao desvendarem afinidades entre coisas aparentemente remotas, trazem à tona componentes significativos do novo das experiências políticas do século 20.

No curso e nos comentários de Hannah Arendt fui me dando conta do lastro das ¿estórias¿ de muitos dos temas da sua obra. Entre eles: a imprevisibilidade e a criatividade da ação; as transformações trazidas pela 1ª Guerra e a nova dimensão de coletivo que fizeram aflorar; o apelo da Revolução; os expurgos de Stalin; a polícia secreta; a dissolução da plausibilidade do tecido social e a dimensão da contingência; o ineditismo dos campos de concentração e do Holocausto; o problema de um código ético para coisas novas na vida da humanidade, inclusive as inovações científico-tecnológicas; os equívocos dos intelectuais na política.

Ao tratar da atividade do pensar, Hannah Arendt recorreu à metáfora socrática do vento: sentimos, mas não vemos. Ouvir de viva voz, como relatei, o sopro do seu pensamento foi uma experiência única. Ela era a própria encarnação da autêntica atividade do pensar. É o que gostaria de realçar celebrando o seu centenário nesta evocação do alcance da sua presença intelectual.