Título: Como lidar com desafio do Irã
Autor: Henry A. Kissinger
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/11/2006, Internacional, p. A22

O programa nuclear do Irã e recursos consideráveis permitem que o país busque o domínio estratégico de sua região. Com o ímpeto de uma ideologia xiita radical e o simbolismo do desprezo pela resolução do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o Irã desafia a ordem estabelecida no Oriente Médio e, talvez, em qualquer outro lugar onde populações islâmicas convivem com maiorias não-islâmicas dominantes.

Até agora, o apelo para que a diplomacia supere esses perigos não rendeu frutos. O fórum de negociação que o mundo criou para a questão nuclear caminha para um impasse, provavelmente intransponível, a não ser num contexto geopolítico mais amplo. Tal negociação ainda não encontrou um fórum. De qualquer modo, as divisões entre os parceiros do diálogo impedem um senso de direção claro.

Os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança mais a Alemanha - conhecidos como os ¿Seis¿ - apresentaram um pacote de incentivos para que Teerã pare de enriquecer urânio como um passo fundamental para o encerramento do programa de armas. Eles ameaçaram impor sanções se a proposta for rejeitada. O Irã insiste em seu ¿direito¿ de prosseguir com o enriquecimento, motivando um debate entre os aliados sobre a natureza das sanções com as quais os Seis se comprometeram. Até mesmo as sanções mínimas propostas pelo E-3 (os três europeus - Grã-Bretanha, França e Alemanha) foram rejeitadas pela Rússia.

Relutando em negociar diretamente com um membro do ¿eixo do mal¿, os Estados Unidos não têm participado do diálogo, entregando uma procuração a Javier Solana, o alto representante da União Européia, que negocia em nome do E-3. Recentemente, a secretária de Estado americana, Condoleezza Rice, anunciou uma mudança de política. Os Estados Unidos - e ela própria - participariam do diálogo sobre a questão nuclear se o Irã suspendesse o programa de enriquecimento durante as conversações. Mas Teerã até agora não demonstrou interesse em negociar com os Estados Unidos, seja no fórum multilateral ou diretamente.

Isso porque Teerã não vê nenhuma vantagem de interesse nacional para abandonar sua pretensão de ser uma potência nuclear e tem fortes razões políticas domésticas para persistir. A continuação do programa de armas nucleares é um modo de apelar para o orgulho nacional e sustenta um apoio doméstico de resto duvidoso. Os incentivos propostos, mesmo que se acredite neles, aumentariam a dependência do Irã em relação ao sistema internacional, que é rejeitado pelos atuais líderes iranianos.

Os negociadores europeus reconhecem a importância de evitar a disseminação de armas nucleares. Mas eles governam sociedades cada vez mais relutantes em fazer sacrifícios imediatos em nome do futuro - como mostra a dificuldade da aprovação de leis de reforma doméstica. Os líderes da Europa sabem que seus públicos não apoiariam uma ação militar contra o Irã e provavelmente se mostrariam muito inquietos numa crise política prolongada em torno de sanções - uma atitude que o Irã sabe explorar com habilidade.

Os aliados europeus dos Estados Unidos optaram por sanções mínimas porque esperam que o mero fato da ação unida dos Seis leve os líderes iranianos a reconsiderar sua posição. A convicção expressada por alguns diplomatas europeus de que o Irã não desejará ser uma nação pária indefinidamente e, portanto, chegará a um acordo é provavelmente ilusória.

À medida que isso ficar claro, os aliados europeus provavelmente aceitarão com relutância uma escalada das sanções, até um ponto em que o Irã responderá com uma atitude de confronto. Nesse momento, eles terão de escolher entre a crise imediata e a crise permanente se deixarem o programa nuclear iraniano avançar livremente.

O dilema é inevitável em qualquer escalada gradual. Se os passos iniciais são mínimos, presumivelmente são suportáveis (e de fato são escolhidos por este motivo). O adversário pode ficar tentado a esperar pelo próximo passo e, por isso, o gradualismo pode acabar promovendo a escalada e tornar inevitável a própria decisão que se tenta evitar.

RÚSSIA

A posição da Rússia é mais complexa. Provavelmente nenhum país - nem mesmo os Estados Unidos - teme uma capacidade nuclear iraniana mais que a Rússia, cuja grande população islâmica localiza-se logo ao norte da fronteira com o Irã. Nenhum país está mais exposto ao vazamento da capacidade nuclear iraniana para as mãos de terroristas ou à onda ideológica jihadista que o presidente iraniano, Mahmud Ahmadinejad, encoraja. Por isso mesmo, a Rússia não quer lançar a hostilidade iraniana contra si mesma sem uma perspectiva de provável sucesso.

Além disso, as atitudes russas em relação aos Estados Unidos sofreram uma mudança significativa. O compromisso com a parceria estratégica é menor. A desconfiança aumentou em ambos os lados.

Os Estados Unidos temem que a Rússia esteja empenhada em reconstruir sua influência imperial no que os russos chamam de ¿exterior próximo¿. A Rússia acredita que os EUA buscam pressionar o Kremlin para que mude suas políticas domésticas e reduza a influência internacional do país.

Graças a sua convicção de que o Irã será um adversário difícil e a sua avaliação desfavorável do esforço americano no Iraque, o Kremlin duvida que os Estados Unidos tenham poder sustentado para um confronto prolongado com o Irã e opta por evitar erguer barricadas onde pode ficar sozinho.

Como conseqüência, Moscou voltou a atenção para a Europa e, na questão do Irã, compartilha operacionalmente da hesitação européia. A diferença é que, se a situação chegar a um ponto crítico, a Rússia será mais propensa a tomar uma posição firme, especialmente quando uma capacidade nuclear iraniana começar a parecer inevitável e ainda mais quando ela parecer iminente.

As negociações nucleares com o Irã caminham para um desfecho inconclusivo. Os Seis, no fim, terão de escolher entre sanções efetivas e as conseqüências de uma capacidade nuclear militar iraniana e o mundo de proliferação que ela implica. Uma ação militar por parte dos Estados Unidos é extremamente improvável nos dois anos finais de uma presidência que enfrenta um Congresso hostil - embora isso possa ser levado mais a sério em Teerã. O Irã certamente não pode ignorar a possibilidade de um ataque unilateral israelense se todas as opções de negociação se esgotarem.

Mais provavelmente, a questão nuclear será absorvida por uma negociação mais abrangente baseada em realidades geopolíticas. Mas é importante ser claro quanto às implicações dessa expressão cada vez mais em voga. Tornou-se comum o argumento de que o Irã (assim como a Síria) deveria ser atraído para um processo de negociação, na tentativa de levá-lo a mudar suas atitudes, como aconteceu, por exemplo, na aproximação com a China há uma geração. Isto, afirma-se, facilitaria o recuo dos Estados Unidos para posições mais sustentáveis do ponto de vista estratégico.

Uma diplomacia que exclua os adversários é claramente uma contradição. Mas o argumento em favor da negociação concentra-se demais na abertura do diálogo e não em sua substância. O diálogo em si é considerado um avanço psicológico. No entanto, o alívio resultante de uma mudança de clima destina-se a ser temporário.

EQUILÍBRIO

A diplomacia - especialmente com um adversário - só pode ter sucesso quando cria um equilíbrio de interesses. Sem isso, ela corre o risco de se transformar num álibi para a protelação ou num paliativo para amenizar o processo de derrota, sem, contudo, eliminar as conseqüências da derrota.

A abertura para a China foi facilitada pelas pressões militares soviéticas sobre a fronteira norte chinesa; a reaproximação entre os EUA e a China implementou o interesse comum já existente de evitar a hegemonia soviética. De modo similar, a diplomacia itinerante no Oriente Médio progrediu porque foi apoiada num equilíbrio preexistente que nenhum lado foi capaz de alterar unilateralmente.

Se o diálogo se tornar seu próprio objetivo, surgirão fóruns sem progresso e incentivos à obstrução. Se, no fim de tal diplomacia, encontrarmos uma capacidade nuclear iraniana e um vácuo político preenchido pelo Irã, o impacto sobre a ordem no Oriente Médio será catastrófico.

A compreensão do modo como Teerã vê o mundo é crucial para a análise das perspectivas de um diálogo. A escola de pensamento representada pelo presidente Ahmadinejad bem pode perceber as perspectivas iranianas como as mais promissoras em séculos. O Iraque entrou em colapso e deixou de ser um contrapeso; dentro do Iraque, as forças xiitas são lideradas por homens que foram treinados em Teerã e lá passaram décadas de suas vidas. As instituições democráticas do Iraque favorecem o domínio dos grupos xiitas majoritários.

No Líbano, o Hezbollah, treinado e guiado pelo Irã, é a força militar mais poderosa. Diante deste cinturão xiita no horizonte e de seu apelo à população xiita no nordeste da Arábia Saudita e ao longo do Golfo, as atitudes nos Estados sunitas - Egito, Jordânia, Arábia Saudita - e nos Estados do Golfo vão da inquietação ao pânico incipiente.

Isso pode explicar o comportamento insolente de Ahmadinejad em sua visita a Nova York para a Assembléia-Geral da ONU, em setembro. Seu refrão parecia ser: ¿Não me falem de sua ordem mundial, cujas regras não ajudamos a fazer e desprezamos. De agora em diante, a jihad definirá as regras ou, ao menos, participará de sua criação.¿

Se esta avaliação das atitudes iranianas estiver correta, elas não mudarão simplesmente pela oportunidade do diálogo com os Estados Unidos.

O argumento de que o Irã tem interesse em negociar sobre o Iraque para evitar o caos ao longo de sua fronteira só é válido se os Estados Unidos conservarem uma capacidade de ajudar a controlar o caos. Há apenas dois incentivos para que o Irã negocie: o surgimento de uma estrutura regional que torne as políticas imperialistas pouco atraentes ou o temor de que, se a situação passar do limite, os EUA ainda possam atacar.

Enquanto o Irã vir a si mesmo como uma cruzada, e não uma nação, um interesse comum não surgirá das negociações. Evocar uma visão mais equilibrada deveria ser um objetivo importante da diplomacia dos Estados Unidos.

O Irã poderá entender, cedo ou tarde, que ainda é um país pobre que não está em posição de desafiar a ordem mundial inteira. Mas tal evolução pressupõe o desenvolvimento de um programa estratégico e de negociação preciso e concreto por parte dos Estados Unidos e seus associados.

Hoje, os Estados sunitas da região - Egito, Arábia Saudita, Jordânia, o governo não-xiita do Líbano, os Estados do Golfo - estão aterrorizados com a onda xiita. A negociação entre o Irã e os Estados Unidos poderia levar a uma corrida de concessões preventivas, a não ser que fosse precedida ou ao menos acompanhada de um esforço significativo para unir esses Estados em torno de uma política de equilíbrio.

Em tal política, o Irã deve encontrar um lugar respeitado, mas não dominante. A retomada do processo de paz palestino desempenharia um papel significativo nesse projeto, o que pressupõe a cooperação intensa entre os EUA, a Europa e os Estados árabes moderados.

Não podemos fugir dessa realidade subjacente. O Irã precisa ser encorajado a agir como uma nação, não como uma causa. Ele não tem incentivo para surgir como um deus ex machina e permitir que os Estados Unidos escapem de suas dificuldades, a menos que os americanos conservem uma capacidade de preencher o vácuo ou, pelo menos, de ser um fator neste preenchimento. Os EUA precisarão reposicionar suas forças estratégicas, mas, se tais ações forem vistas como prelúdio de uma retirada da região, um colapso das estruturas existentes será provável.

Uma diplomacia objetiva e criativa para o Irã será importante para a construção de uma região mais promissora - mas só se o Irã não vier a acreditar, no processo, que é capaz de moldar o futuro como quiser e se os potenciais elementos de uma nova ordem não se desintegrarem enquanto os EUA organizam seus objetivos.