Título: Incor, no limite da excelência em pesquisa e da crise financeira
Autor: Carlos Marchi
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/11/2006, Vida&, p. A26

Quinta-feira, às 17 horas, o imunologista Jorge Kalil, presidente do Conselho Diretor do Instituto do Coração (Incor), esqueceu por uma hora a crise ateada à instituição para se dedicar, com o médico Edécio Cunha Neto, a uma conference call com especialistas de uma empresa belga de biotecnologia que quer pesquisar a compatibilização de sua vacina antiaids com a vacina patenteada pelo Incor.

Por uma hora, Kalil esqueceu a crise e deixou aflorar o lado cientista, envolvendo-se apaixonadamente no sofisticado debate telefônico.

Ele exercitava uma perna pouco conhecida do binômio que simboliza o Incor e que está bordado na manga esquerda dos jalecos de médicos e auxiliares: ¿Ciência e Humanismo¿. A segunda perna do binômio, o humanismo, está na função social que produz números estratosféricos: por ano, o Incor promove 290 mil consultas (790 por dia), 2,5 milhões de exames diagnósticos (687 por dia), 183 mil exames por imagem (502 por dia), 28,8 mil exames por medicina nuclear (80 por dia) e 5 mil cirurgias (14 por dia) - 80% de tudo pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Mas da primeira perna, pouco se conhece.

A prática da pesquisa no Incor também revela números impressionantes, embora pouco conhecidos - e é justamente essa prática científica que assegura a excelência da assistência médica ali prestada. ¿Para estar na ponta da prestação de serviços, é preciso pesquisar. Quem quiser chegar ao limite do conhecimento tem de estar sempre no limite da pesquisa científica¿, diz Kalil.

NO LIMITE

O Incor vive dois limites. De um lado, é reconhecido no mundo, o que lhe permite ser contraparte freqüente e privilegiada da Universidade Harvard, o maior centro de pesquisas médicas do mundo, o que se traduz em um incessante trabalho que envolve muitas áreas da cardiologia e até em estudos de aids.

De outro, partilha uma séria crise financeira na Fundação Zerbini, que viabiliza e gerencia o financiamento das suas pesquisas e enfrenta um déficit de R$ 250 milhões.

Na mesma quinta-feira, cinco horas antes da conference call de Kalil, o professor Eduardo Moacir Krieger, diretor do Serviço de Hipertensão do Incor e presidente da Academia Brasileira de Ciências, foi à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) levar o relatório sobre o projeto de pesquisa ¿Estudo Integrado da Hipertensão Arterial - Caracterização Molecular e Funcional do Sistema Cardiovascular¿, que se estendeu por quatro anos e teve a decisiva participação do Laboratório de Genética e Cardiologia Molecular do Incor. O estudo, feito por convênio da Zerbini, produziu 163 trabalhos publicados em revistas científicas e propiciou 25 mestrados, 29 doutorados e 11 teses de pós-doutorado.

Krieger defende a continuidade da estrutura que dá à Zerbini o mecanismo por trás das pesquisas feitas no Incor. ¿Harvard não é o maior centro médico do mundo porque lá se ensina diferente, mas porque tem lá o maior centro de pesquisas médicas do mundo¿, define.

EXCELÊNCIA CIENTÍFICA

O Incor é um mar de excelência. Patrocina cinco vezes mais publicações científicas que o restante do Hospital das Clínicas; publica mais trabalhos sobre cardiologia que todo o resto da América Latina junto; está entre as cinco maiores instituições produtoras de pesquisa em cardiologia no mundo.

¿Tudo isso não existiria sem a Fundação Zerbini. Se não tivéssemos um instrumento que permite sinais ágeis na captação de recursos e a compra de aparelhos, não poderíamos funcionar¿, afirma o professor Protásio Lemos da Luz, diretor da Unidade de Aterosclerose.

Na quinta-feira à noite, oito horas depois de Krieger deixar a Fapesp, o dr. Protásio revisava a tese ¿Ação do vinho tinto sobre o endotélio e o sistema nervoso simpático¿, que sua aluna de doutorado Ana Andrade Magalhães, do Ceará, apresentará na quarta-feira. Ele cita a origem de Ana e lembra que a maioria dos 100 alunos de pós-graduação que o Incor abriga volta para seus Estados ao concluir a tese. ¿Aqui, eles aprendem a fazer ciência, a treinar o método científico e a executar um protocolo específico. Quando voltam para seus Estados, levam com eles um sistema de educação científica¿, diz com orgulho.

O professor Eduardo Sosa, diretor da unidade de Arritmia e Marcapasso - um argentino de Rosário que veio para o Hospital das Clínicas em 1968 e participou da criação do Incor - não tem dúvidas sobre a razão da excelência: ¿Se nós não tivéssemos feito pesquisas, não teríamos atingido a capacidade de oferecer a nossos pacientes uma cardiologia de alta complexidade¿. Para ele, tudo isso só foi possível porque a Zerbini deu suporte e captou recursos para desenvolver tecnologias - e explica que o seu universo, o das arritmias, só pode ser decifrado com muita tecnologia e muita pesquisa.

A Fundação Zerbini firma convênios com institutos de financiamento e empresas privadas - o que o Incor não poderia fazer -, cuida da parte financeira das pesquisas e as monitora, além de comprar equipamentos e insumos, e dá agilidade à realização dos trabalhos científicos. ¿Se não houver a fundação, quem vai cuidar disso? Eu não sei fazer isso¿, protesta o professor José Carlos Nicolau, diretor da unidade de Coronariopatia Aguda e integrante de comitês científicos em vários países, que acabou de chegar do congresso da American Heart Association, um dos três maiores do mundo, onde apresentou três trabalhos.

TREINO EM CIÊNCIA

Além de dirigir vários projetos de pesquisa do Incor, Nicolau coordena a parte brasileira de trabalhos da Universidade Harvard e um grande estudo da National Institute of Health (NIH), órgão oficial que responsável pelos estudos médicos nos Estados Unidos, com a Universidade Duke.

Todas essas pesquisas são feitas através da Fundação Zerbini. ¿O Incor não poderia nunca fazer esses convênios¿, registra. Para auxiliá-lo, ele recrutou uma rede de 70 centros, em 15 Estados brasileiros; e registra que a participação nesses estudos melhora o nível da assistência médica nesses centros e treina centenas de profissionais na prática de procedimentos científicos.

A pesquisadora Verônica Coelho, do Laboratório de Imunologia, que é dirigido por Kalil e investiga desde a compatibilização de transplantes até aids, relata que sempre tem dificuldades com a compra de insumos no exterior. ¿Às vezes, um reagente demora três meses para chegar. Um laboratório americano nunca espera: pede num dia, recebe no outro¿, explica.

Ela lembra que uma pesquisa não pode esperar, mas admite que, se a compra do material destinado à pesquisa viesse do Incor, a burocracia seria infinitamente maior, porque teria de obedecer aos padrões da administração pública.

Ter a permanente presença da pesquisa na sala ao lado dá ao Incor a possibilidade de transferir conhecimento para a aplicação prática, assinala o professor Cláudio Meneghetti, diretor do serviço de Medicina Nuclear do Incor, que orienta cinco pesquisas científicas, todas pagas por multinacionais de medicamentos - o que é uma forma de financiar o Incor, através da Zerbini.

Meneghetti lembra que a dedicação move a maioria dos 299 médicos do Incor, entre os que clinicam e os que pesquisam - a grande maioria ganha pouco mais de R$ 5 mil, depois de estudos que nunca terminam antes dos 32 anos.