Título: Justiça comanda o acinte
Autor: Chaves, Mauro.
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/11/2006, Espaço Aberto, p. A2

A maior inversão de valores capaz de se abater sobre uma sociedade é a possibilidade, medonha, de os agentes públicos incumbidos de realizar a justiça se transformarem na demonstração mais exuberante da injustiça. Quando os que têm de corrigir são os mais errados, a descrença se torna, no mínimo, dobrada. É a sensação que se tem quando se torce para o mocinho e se descobre, no final do filme, que ele é que é o bandido.

Muito se tem falado da falta de sensibilidade, em relação às agruras do povo pobre e miserável, por parte dos parlamentares que reajustam seus salários de maneira escandalosa - devendo sua remuneração 'básica' saltar, agora, de R$ 12.847,20 para R$ 24.500,00, afora as verbas 'indenizatórias', os salários extras anuais (13 , 14 , 15...) e demais indecências remuneratórias. Nada se fala, no entanto, sobre os poucos - apenas 11 - que puxam o cordão dos empanzinados, pois é com base nos exorbitantes reajustes destes - os dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) - que se espalha, em imensa cascata, a dinheirama subtraída dos escorchados contribuintes para os felizardos de todos os Poderes.

Imagine-se agora: se, por um repentino laivo de generosidade social, os 11 ministros do Supremo se contentassem em viver com metade do que ganham ( o que, decerto, não lhes acarretaria qualquer subnutrição), deixando, assim, de propiciar a locupletação geral com base na famigerada 'isonomia', quanto ganharia o Estado brasileiro? Quanto se enfraqueceria a torrencial cascata? Em termos de custo/benefício, esse imenso benefício social não custaria tão pouco, não representaria 'sacrifício' perfeitamente absorvível para um minúsculo grupo de 11 cidadãos que já desfrutam tantos, tantos e tantos privilégios?

A presidente do Supremo, ministra Ellen Gracie, que também preside o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), agora pretende que os integrantes desse colegiado (justamente o encarregado de fiscalizar a lisura da máquina judiciária brasileira!) recebam gratificação (jetom) de 12% (do salário dos ministros do STF) em cada sessão a que compareçam - o que representa reajuste de 24%, já que participam de duas reuniões por mês -, afora o direito a passagens aéreas e a diárias quando tiverem que se deslocar a serviço, para sessões, reuniões, trabalhos, inspeções, correições, missões, etc.

Com o reajuste proposto a ministra Gracie passará a ganhar R$ 30,3 mil . Em nome da transparência republicana, que se espera das figuras públicas de maior responsabilidade numa democracia digna deste nome, que tal se a elegante magistrada demonstrasse - quem sabe, num site - qual a necessidade de auferir tão elevados proventos? Com viagens e tantas outras despesas pagas pelos cofres públicos, não seria razoável a ministra dar alguma explicação aos cidadãos prestantes sobre o motivo pelo qual precisa ganhar cerca de cem vezes o que ganha a grande maioria das famílias brasileiras, que vivem de salário? Quais serão os grandes e necessários gastos da meritíssima? Roupas? Jóias? Passeios? Parentes? Pensões alimentícias? Escolas? Restaurantes? Baladas? Bebidas? Será que a conspícua dama precisaria gastar tanto dinheiro para viver bem? Se não, contentando-se com menos, não haveria de influenciar seus colegas (de Supremo e de CNJ) na contenção de ambições argentárias que os levasse a respeitar mais o tão suado dinheirinho dos contribuintes?

Se isso acontecesse e os integrantes da cúpula do Judiciário se conformassem com padrões de ganho mais compatíveis com a pobreza do Brasil, evitar-se-ia a avalanche de aumentos despropositais de gastos da máquina administrativa, propiciando assim maior canalização de recursos públicos para investimentos em educação, saúde, saneamento básico, segurança, infra-estrutura, em favor de toda a sociedade e, especialmente, da sofrida população de baixa renda. Seria o caso, então, de dizer que também por aqui nunca tantos (a população brasileira) deveram tanto a tão poucos (os 11 membros do Supremo).

Agora, se estabelecermos alguma relação entre o resultado efetivo do trabalho e sua respectiva remuneração, no âmbito do Judiciário - o que caberia aferir em qualquer ramo de atividade - a desproporção se torna acachapante: em todos os níveis a Justiça brasileira é cara e ruim - e ruim, especialmente, pela intempestividade, pela morosidade insuportável dos processos, que sempre resulta em desprezo brutal pelo direito dos credores (com exceção dos spreadadores) e proteção paternal aos infratores e/ou maus pagadores.

Achou-se a coisa mais natural do mundo o ministro do Supremo Joaquim Barbosa, relator do processo contra os 40 mensaleiros denunciados pelo procurador-geral da República, falar da impossibilidade de a mais alta Corte de Justiça fazer, tempestivamente, aquele julgamento, fosse pelo número excessivo de acusados, fosse pelo fato de o tribunal ser apto para questões constitucionais (e não investigações criminais), fosse porque casos polêmicos exigem a presença de todos os ministros nas sessões - o que é difícil de acontecer (por quê?). No fundo, o ministro Barbosa passou recibo da 'impunidade estrutural' assegurada pela mais elevada instância da Justiça brasileira.

É claro que o exemplo desce de cima e se espalha, como poeira entorpecedora, por todos os ambientes e instâncias da Justiça. É por isso que nos fóruns, só por alguns servidores terem participado de mesas em seções eleitorais, eles e todos os demais foram contemplados com quatro dias inteiros de folga após as eleições. E é por isso que em Taboão da Serra, por exemplo, as três juízas das três varas fazem verdadeiro 'revezamento de faltas' - uma sumindo uma semana e passando os despachos para outra, que também some