Título: Espaço desguarnecido
Autor: Nogueira, Marco Aurélio.
Fonte: O Estado de São Paulo, 25/11/2006, Espaço Aberto, p. A2

As eleições de 2006 coincidiram com a evidenciação de que a sociedade brasileira passa por importantes mudanças em seu modo de ser, de se constituir e de se relacionar com a política. O eleitorado, mais uma vez, não votou em partidos, mas em pessoas. Ainda que a tendência não seja nova, ela hoje reflete, além da pouca relevância dos partidos, um quadro em que escolhas e opções são feitas mais pela cabeça das pessoas que por processos institucionalizados de formação de opinião.

Não há apenas fraqueza dos partidos ou das instituições políticas, mas também 'força' dos indivíduos e dos grupos informais. A opinião que prevalece nem sempre é a que vem 'de cima para baixo', mas sim a que se forma 'de baixo para cima', por canais nem sempre conhecidos.

Os dois principais partidos políticos - o PT e o PSDB - saíram das urnas com um ponto de interrogação nas costas. Apesar dos bons resultados que obtiveram, não evoluíram como atores políticos capazes de coordenar a sociedade ou mesmo de lhe apresentar algum programa ou uma agenda de reformas. Emergiram das urnas como partidos divididos, às voltas com problemas internos de difícil solução e desprovidos de pujança propositiva, como se fossem organismos sem espírito e sem identidade.

O sucesso eleitoral do PT surpreendeu, sobretudo porque esse partido atravessou os dois últimos anos às voltas com uma crise de amplas proporções, ético-política, por um lado, e operacional, por outro. Quando todos esperavam seu recuo eleitoral, deu-se o contrário: não somente Lula foi reeleito com votação impressionante como também a bancada petista no Congresso Nacional se manteve no mesmo patamar de antes, revelando a presença de uma importante base nacional de sustentação e apoio às suas postulações. Mas foi Lula, não o PT, quem recebeu a consagração eleitoral. O 'lulismo' ficou ainda mais forte que o 'petismo' e o partido se converteu numa espécie de refém de sua maior liderança. O PT, que já se havia cindido em 2005, com a criação do PSOL, não conseguiu aglutinar suas correntes internas em torno de uma definição clara do que deva ser o segundo mandato de Lula e de uma concepção de reformismo para um país como o Brasil, nas concretas condições do capitalismo globalizado. Tal indefinição perdura ainda agora, quando se discute com maior afinco a cara que terá o segundo governo de Lula. Como evoluirá?

Passou-se algo parecido com o PSDB, que desde 2005 demonstrou baixa capacidade de assimilar a seu favor a crise política do governo Lula e de se apresentar como protagonista de uma iniciativa forte para superá-la e para promover o encontro do sistema político e administrativo brasileiro com os ideais republicanos. Revelou surpreendente dificuldade para escolher seu candidato à eleição presidencial, e ele teve desempenho eleitoral medíocre, nada representativo da proclamada 'potência' moderna do partido. Alckmin conseguiu a proeza de obter menos votos no segundo turno que no primeiro, graças aos grotescos erros de avaliação que cometeu e à incapacidade de aglutinar o voto social-democrata em âmbito nacional. Foi em boa medida abandonado pelo partido, que terminou as eleições dividido, sem unidade de comando e sem definir o eixo em torno do qual tentará construir sua plataforma de oposição. Ainda que tenha conquistado o governo de importantes Estados e formado uma importante bancada no Congresso, o PSDB não se consolidou como força nacional nem se mostrou qualificado para interpelar as diferentes camadas da sociedade brasileira. Revelou-se implantado somente em termos regionais, desprovido de um discurso articulado e com baixa capacidade de proposição.

O quadro não muda muito no que diz respeito às demais legendas. É impossível afirmar que alguma força política se sobressaiu nestas eleições. O PFL ficou praticamente reduzido a Brasília. O PMDB manteve sua expressão nacional, o que lhe dá ótimas condições de usar e abusar da sagacidade política para se manter no primeiro plano. Sua caracterização, no entanto, permaneceu a mesma: um corpanzil sem rosto, sem alma e sem eixo. Houve alguns avanços localizados, do PSB, do PP e do PDT, mas nada que se possa considerar sustentável. Os demais partidos foram dizimados pela cláusula de barreira.

O Brasil parece ter ingressado numa fase em que os partidos políticos não mais coordenam a sociedade nem orientam os processos de mudança. Mantêm-se como personagens importantes do mundo político, capturadores de votos, mas não de consensos, até mesmo porque têm poucas idéias a oferecer. No formato atual, os partidos já não dão conta da complexidade nacional nem se mostram capazes de agir com determinação reformadora e disposição de organizar a sociedade. Para tentarem se reconstruir como atores positivos dependem fortemente das medidas que vierem a ser tomadas em termos de reforma política. Ou seja, ficaram mais vinculados ao Estado que à sociedade.

A desorganização do quadro partidário e a 'desconstrução' do PT e do PSDB fizeram com que a política nacional passasse a se ressentir da ausência de uma referência consistente em termos de esquerda democrática, fator que tenderá a dramatizar em alguma medida a movimentação política no próximo período. É de esperar que tanto os núcleos democráticos oposicionistas (caso, por exemplo, do governador eleito de São Paulo, José Serra, e dos segmentos agregados em torno do espólio do PPS) quanto as alas mais políticas do PT e do governo Lula venham a buscar algum tipo de operação para ocupar esse amplo espaço de esquerda, que hoje está desguarnecido.

É uma situação que terá de ser analisada com atenção particular daqui para a frente. De alguma maneira, a agenda e a atuação do segundo governo de Lula serão influenciadas pelo que vier a ocorrer no mundo dos partidos.