Título: Imoralidade tributária
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Fonte: O Estado de São Paulo, 26/11/2006, Notas e Informações, p. A3

E m nome da moralidade e em respeito aos contribuintes honestos, em particular os 2,8 milhões de empresas que pagam seus tributos regularmente ou renegociaram o débito e vêm cumprindo as condições, o Senado tem o dever de derrubar a emenda, aprovada pela Câmara dos Deputados, que permite desconto de até 97% dos débitos tributários renegociados nos últimos anos.

O secretário da Receita Federal, Jorge Rachid, reagiu com indignação à decisão da Câmara. A medida, disse ele, 'beira a imoralidade' e 'é um desrespeito com o contribuinte que paga os tributos em dia'.

Desinteressados no trato de questões da maior importância para o País, como as reformas que assegurem o equilíbrio duradouro das finanças públicas e o crescimento sustentado da economia, os congressistas não perdem a oportunidade de inserir em propostas sob seu exame emendas que beneficiem contribuintes em atraso. Desta vez, utilizaram a Medida Provisória (MP) 321, baixada pelo governo com o objetivo de retirar a obrigatoriedade da aplicação da taxa referencial (TR) nos financiamentos imobiliários feitos pelo Sistema Financeiro de Habitação. Espertamente, por proposta do deputado Luiz Sérgio (PT-RJ), a essa MP foi acrescentado um artigo que oferece vantagens excessivas para cerca de 21 mil empresas que haviam aderido ao primeiro programa de renegociação de débitos tributários e 260 mil que aderiram ao segundo.

O primeiro programa, de 2000, chamou-se Recuperação Fiscal (Refis); o segundo, de 2003, Parcelamento Especial (Paes), mas ficou conhecido como Refis 2. O Refis 3 foi aprovado neste ano e, quando de sua tramitação, os deputados incluíram uma emenda como a feita na MP 321, mas o governo conseguiu derrubá-la no Senado.

O artigo acrescentado à MP 321 permite que as empresas inscritas no Refis 1 e Refis 2 antecipem o pagamento dos débitos renegociados. Em tese, a antecipação é vantajosa para a Receita, que recebe de imediato um valor que seria pago em prazo longo, o que envolve o risco de inadimplência no futuro. A esperteza está no cálculo do valor presente da dívida, ou seja, do valor pelo qual o débito pode ser quitado.

O valor do débito é projetado por meio de juros simples, de acordo com a Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP). Para trazer esse débito para seu valor presente, o artigo aprovado pela Câmara permite a utilização do sistema de juros compostos, mas com a utilização da Selic. O devedor ganha duplamente: utiliza-se uma forma de cálculo que reduz muito o valor presente e a base para esse cálculo é uma taxa de juro maior (a Selic é mais alta do que a TJLP). Simulações feitas pela Receita Federal mostram que, com esse método de cálculo aprovado pela Câmara, uma dívida de R$ 73 milhões cairia para apenas R$ 2 milhões, uma redução de 97,3%. Em outra conta feita pela Receita, uma dívida de R$ 1,45 bilhão se reduziria para R$ 196 milhões, um corte de 86,5%.

'Isso equivale a um perdão da dívida', diz, com razão, o secretário Rachid. A entrada em vigor de uma medida como essa terá grande efeito negativo sobre o comportamento de todos os contribuintes, com conseqüências desastrosas para o sistema tributário brasileiro e para a arrecadação.

Os sucessivos Refis são um estímulo ao não-pagamento dos tributos em dia. Atrasar o recolhimento do valor devido ao Fisco torna-se um bom negócio, visto que o dinheiro pode ser aplicado no mercado a juros compensadores. Enquanto esse dinheiro rende, cedo ou tarde aparecerá um programa vantajoso de renegociação do débito tributário, com juros baixos e talvez sem multas, e com prazos a perder de vista. Melhor ainda, dali a pouco pode surgir um novo programa, como esse que acaba de ser aprovado pela Câmara, que permite a quitação do débito por um valor próximo de zero.

Para não estimular ainda mais o não-pagamento de impostos e para não ofender o contribuinte honesto, um benefício como esse tem de ser rejeitado pelo Senado. Se também o Senado se render à pressão dos maus pagadores, caberá ao presidente da República vetar essa imoralidade tributária.