Título: 'Sociedade não quer rever anistia agora'
Autor: Arruda, Roldão
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/11/2006, Nacional, p. A18

O processo que um grupo de ex-presos políticos move na Justiça, exigindo o reconhecimento de que foram torturados nos anos do regime militar pelo coronel da reserva Carlos Brilhante Ustra, reabriu antigas feridas políticas. Militares se reuniram no Rio num inesperado ato de solidariedade ao coronel, ao mesmo tempo que juristas e militantes de organizações de direitos humanos propunham a rediscussão da Lei da Anistia, para permitir a punição de militares.

O deputado Fernando Gabeira (PV-RJ), militante de esquerda e prisioneiro político no regime militar, considera que a proposta de rediscutir nesse momento a Lei da Anistia não encontra eco na sociedade. É mais aceitável e mais contemporâneo, na opinião dele, rediscutir a abertura dos arquivos com documentos oficiais que permitam restabelecer a verdade - sem necessariamente falar em punição a militares que cometeram crimes em nome do Estado, entre eles a tortura de prisioneiros políticos. A transparência, segundo Gabeira, é uma exigência da democracia.

O senhor acha que o País deve reabrir a discussão sobre a Lei de Anistia?

Colocar a revisão da Lei da Anistia na ordem do dia, nesse momento, talvez não expresse uma necessidade da sociedade. É preciso esperar um pouco. Podemos aprofundar o acesso à verdade, sem necessariamente rever a Lei da Anistia.

Refere-se ao acesso aos documentos do período da repressão?

Sou favorável e luto em todas as frentes possíveis pelo acesso à verdade. Essa é uma reivindicação muito contemporânea. Vivemos num mundo no qual o maior conflito bélico, a guerra no Iraque, foi desencadeado e desenvolvido a partir de uma mentira oficial - a existência de armas de destruição de massa, que nunca foram encontradas. Posso lembrar também o caso do brasileiro Jean Charles, assassinado em Londres num episódio cujas informações oficiais foram contestadas por uma comissão independente. Precisamos aprofundar a idéia do direito à verdade, o que inclui a abertura de documentos oficiais, e não só os da ditadura.

Refere-se também aos documentos do atual governo?

Todos os documentos devem ser abertos, dentro de uma política de maior transparência. No Brasil, essa luta possui maior receptividade entre os cidadãos do que a revisão da punição dos militares.

Pelas leis existentes, os documentos oficiais sobre o período da repressão podem permanecer sigilosos por tempo indeterminado.

Essas leis têm que ser superadas. Esta semana devo participar de uma reunião com jornalistas que trabalham com investigações e alguns deputados, para discutir avanços na legislação que garantam maior transparência. Mas também sabemos que não adianta garantir o acesso aos documentos sem criar infra-estrutura, sem investir. Não adianta o arquivo ser franqueado à consulta e, quando você chega lá, não tem quem o atenda.

Como o senhor vê o caso do grupo de ex-presos políticos que busca na Justiça uma declaração de que foi vítima de tortura?

Acredito que, no caso específico, a luta é sobretudo pelo direito à verdade.

Como vê o caso brasileiro em comparação com os países vizinhos, também submetidos a períodos de ditadura, quase na mesma época?

Na comparação com o Chile e a Argentina, poderíamos ter feito um pouco mais, mesmo reconhecendo que a repressão nesses dois países foi mais brutal que no Brasil, considerando sobretudo o número de mortos, uma vez que é muito difícil fazer esse tipo de comparação. Eles resolveram bem a questão dos documentos, com a abertura dos arquivos secretos, e a questão dos desaparecidos, em casos semelhantes ao que tivemos aqui, no episódio da Guerrilha do Araguaia.

Em toda essa história, um dos maiores dramas é o das famílias que nunca souberam como morreram e onde estão os restos mortais dos parentes.

Em outros países as autoridades facilitaram o acesso, ajudaram nas buscas, reconheceram as necessidades das famílias. Tiveram mais força nas relações com os militares que tinham tomado o poder do que o governo civil do Brasil.