Título: O novo mundo bipolar: China x Estados Unidos
Autor: Cohen, Roger
Fonte: O Estado de São Paulo, 26/11/2006, Internacional, p. A20

O mundo unipolar com predomínio americano que emergiu do fim abrupto da Guerra Fria já virou história. Em retrospecto, ele será visto como o interlúdio de 17 anos que produziu a guerra do Iraque e muita conturbação até o surgimento de um novo mundo bipolar tendo como centros Washington e Pequim.

Por enquanto, esses pólos são desiguais, sendo maior o poderio americano, mas a China do presidente Hu Jintao já avançou bastante no caminho para o status de superpotência e a articulação de como suas forças serão usadas para estabelecer uma nova bipolaridade. Os países de novo têm opções: a via americana ou a chinesa. Na cúpula de 21 países do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (Apec), em Hanói, esse novo mundo era visível. O presidente George W. Bush ficou pouco em evidência por razões de segurança enquanto Hu apresentava sua visão de ¿desenvolvimento pacífico¿. Seu discurso insistiu em ¿harmonia¿, uma palavra da moda chinesa, e conclamou um aumento da ¿ajuda oficial ao desenvolvimento sem precondições¿. Todos sabemos quais são as ¿precondições¿ americanas: democracia, liberdade, direitos humanos, o império da lei. Quando o Ocidente oferece dinheiro ou simplesmente o seu abraço, ele quer essas coisas em troca.

A China não tem essas preocupações ou escrúpulos. Se o consenso de Washington é ideologicamente intervencionista, o emergente consenso de Pequim parece ideologicamente agnóstico. Ele preza paz, desenvolvimento e comércio. E não dá a mínima para o modelo político ou econômico do país, desde que o petróleo e as matérias-primas continuem fluindo.

Sob esse aspecto, o discurso da secretária de Estado, Condoleezza Rice, na Apec foi interessante. Ela investiu contra Mianmá e Coréia do Norte por terem ¿escolhido a rejeição da via da cooperação¿. Hu não mencionou nenhum desses dois países. A China, claro, solapou as sanções americanas a Mianmá - que visavam incitar o governo a libertar a líder da oposição Aung San Suu Kyi e reconhecer sua vitória nas eleições de 1990 - e está investindo pesadamente em petróleo e gás. A ajuda econômica de Pequim mantém à tona o regime norte-coreano odioso e agora nuclear de Kim Jong-il.

As diferenças ideológicas no novo mundo bipolar não são tão grandes quanto o abismo da Guerra Fria entre Washington e Moscou. O investimento estrangeiro de US$ 72,4 bilhões na China, em 2005, boa parte dele americano, é uma medida do quanto ficou interligado um mundo antes fragmentado. Mas elas são cada vez mais claras.

Os EUA travaram guerras no Afeganistão e no Iraque nos últimos cinco anos. Por contraste, ¿o principal objetivo estratégico da China hoje não é o conflito, mas evitar o conflito¿, como colocou Cheng Li, um professor do Hamilton College.

A ênfase de Hu na paz, em parte um marketing inteligente num mundo que desabona a belicosidade americana, é acima de tudo uma aposta estratégica de longo prazo nos frutos que o crescimento anual de 10% trarão. Reflete também as cicatrizes de conflitos na China, cicatrizes também evidentes no Vietnã, outro país asiático em rápido crescimento mais interessado em dinheiro que em lembranças dolorosas.

A China não está no negócio de exportar guerra, modelos de desenvolvimento ou projetos políticos. Ela quer fazer negócios, a moralidade que se dane. A democracia, na sua visão de mundo, vem num muito distante segundo lugar em relação ao crescimento - se é que vem em algum. A visão mais bondosa da posição da China é a seguinte: o crescimento resolve a maioria dos problemas, e nenhum problema, seja ele a pobreza ou a escravidão, pode ser solucionado sem ele.

Em nenhum outro lugar as diferenças chinesas com Washington são mais claras que na África. Enquanto as principais nações industriais do G-8 condicionam a ajuda à África a democracia e ¿tolerância zero à corrupção¿, a China faz acordos energéticos do tipo consolidado no recente fórum China-África em Pequim.

¿Os países africanos agora podem jogar para várias audiências¿, disse Jeffrey Herbst, reitor da Universidade de Miami e especialista em África. ¿O G-8 foi eclipsado e os grandes perdedores são Bono e Jeffrey Sachs, e a multidão das instituições de caridade. Os chineses não estão interessados na governança interna ou em questões de direitos humanos em Estados africanos¿, acrescentou.

A abordagem chinesa tem o mérito de ver mais potencial do que uma causa para aplacar consciências na África; ela tem o inconveniente de ajudar bandidos como Robert Mugabe do Zimbábue. Como em Mianmá, ela diminui a influência americana adotando uma posição contrária a ela.

Em geral, os chineses tentaram usar discretamente seu novo poder. Mas a recente eleição na Zâmbia, onde a China fez importantes investimentos em cobre, sugeriu os limites dessa política. Quando o candidato de oposição, Michael Sata, denunciou as práticas trabalhistas chinesas e expressou apoio a Taiwan, a China deixou claro que a Zâmbia pagaria caro se Sata vencesse. Ele perdeu.

A China foi uma questão eleitoral quente na Zâmbia assim como foram os EUA de Bush nas recentes eleições européias. Uma superpotência retraída é um paradoxismo. A harmonia pode ser a meta, mas a desarmonia faz parte do fardo global que qualquer superpotência terá de carregar. Com o tempo, Pequim descobrirá isso.

Nesse ínterim, Washington está descobrindo quantas estradas levam a Pequim. Depois que Bush se encontrou com Hu aqui em Hanói, Christopher Hill, o principal negociador americano com a Coréia do Norte, foi enviado à China atrás de um acordo que, ao que se comenta, envolveria incentivos econômicos a Pyongyang em troca de um compromisso norte-coreano com o desmantelamento de algumas instalações nucleares e a admissão de inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA).

Isso foi um bom resumo do novo mundo bipolar sino-americano. No esforço preparatório para a guerra do Iraque em 2003, a administração Bush deixou de lado a AIEA e a opinião global em geral. Os inspetores da AIEA saíram do Iraque e da Coréia do Norte no ano em que a guerra começou. ¿Bons ventos os levem¿ foi a reação dos EUA.

Mas a era unipolar de 17 anos acabou e os EUA agora batem com deferência à porta chinesa. ¿Uma nação muito importante¿, assim Bush descreve a China. O Iraque expôs os limites do poderio americano.

Chegou a era da disputa entre capitalismo democrático e capitalismo de partido único, uma luta entre a bandeira da liberdade pluripartidária de Washington e a bandeira de crescimento sem precondições de Pequim. Democracia versus harmonia. Fiquem ligados.