Título: A República democrática corre risco no Brasil?
Autor: Sola, Lourdes
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/09/2006, Espaço Aberto, p. A2

A nova crise de governo, em que pese a existência de várias características comuns às anteriores, que pontuaram o mandato do presidente Lula, distingue-se delas num aspecto essencial: representa o teste de stress mais decisivo para os destinos da República democrática brasileira. O objetivo deste artigo é elaborar algumas das razões em que se fundamenta essa afirmação. Elas vão muito além do cálculo estritamente eleitoral, embora essa modalidade de cálculo político atravesse, sim, as reflexões que quero compartilhar com os leitores. E é natural que atravesse, pela simples razão de que o desenlace da crise de governo atual depende também (mas não só) da legitimidade eleitoral outorgada pela população ao vencedor da disputa pela Presidência.

Vale a pena começar pelo caráter inédito desse novo teste de stress. Sua característica singular é que ocorre às vésperas de eleições, que podem consolidar o favoritismo do presidente Lula, ao mesmo tempo que as sombras já acumuladas sobre as condições de governabilidade no segundo mandato se adensam, adquirindo contornos novos e mais graves . As perspectivas de um segundo mandato apontam para um alto teor de incerteza no quadro político num futuro tão próximo quanto o dia seguinte ao das eleições, literalmente. Por vários motivos, que passo a enumerar.

A natureza especial desta crise de governo não consiste apenas em suas dimensões policiais e criminais, as quais, juntamente com o ativismo da mídia, deverão prolongar-se no cenário pós-eleitoral . Desta vez, a crise de governo envolve exclusivamente o círculo íntimo do Planalto e parte do PT, o que inclui também, em caráter nitidamente subalterno, os órgãos de Estado mobilizados para prevenir flagrantes ou para adiar a detecção imediata e tecnicamente factível da origem do dinheiro - dando folga para que se construa uma versão potável para a opinião pública, e conveniente em termos do tempo eleitoral.

O escopo da crise, como sua natureza, é diferente, não apenas porque quaisquer investigações são lesivas à autoridade política do presidente no segundo mandato, mas por outra razão adicional: Lula e o PT deixaram de ser os beneficiários da erosão cumulativa da legitimidade do Congresso, dos partidos e da política observados até aqui - pela qual, de resto, foram co-responsáveis. Por isso, o escopo e a qualidade da coalizão governamental possível - que inclui necessariamente uma base aliada no Congresso e o apoio de um eixo de governadores - se restringiu de forma considerável. O custo para qualquer partido integrar a base aliada no Congresso se elevou exponencialmente e, com ele, o poder de barganha do parceiro preferencial, o PMDB. Sem contar com a hipótese realista de que essa crise de governo venha a dar novo impulso às alas oposicionistas do PMDB, e mesmo às dissensões internas no PT. Assim, do ponto de vista da montagem de uma coalizão governamental não há como prever quais serão as bases de sustentação do governo. Mesmo um eventual aumento no tamanho da bancada do PT não será suficiente para sustar a tendência à fragmentação da base aliada no day after, por força da deterioração da imagem e da credibilidade do partido junto a seus pares.

Do quadro de incertezas descrito deriva um tipo de risco cujo impacto é difícil de prever, pois se trata de uma incógnita. Qual será 'o modo Lula de governar', diante do contraste entre sua legitimidade eleitoral e o controle que exerce sobre movimentos sociais vocais, por um lado, e, por outro, da erosão da autoridade indispensável para governar? Que fará para restabelecer sua ascendência e a do PT sobre a classe política e sobre as elites governamentais, em geral?

Ainda no que tange ao 'modo Lula de governar' no futuro imediato, vale outra pergunta. Diante da capacidade decrescente de Lula (e do PT) para gerar consensos mínimos em torno de políticas públicas - capacidade sem a qual não se governa em nenhum regime político, democrático ou não -, como passará a usar, ou será tentado a usar os poderes de Estado à disposição da Presidência?

Não há respostas para estes questionamentos, mesmo porque os destinos da República democrática dependem dos resultados das eleições, e este artigo se apóia num suposto forte: o da vigência de um enorme hiato que a crise de governo que atravessamos aprofundou ainda mais, e que gera um equilíbrio instável . Por um lado, o superávit da legitimidade eleitoral, que é apenas uma das condições de legitimidade política do governante, mas indispensável em regime democrático. E, por outro, um déficit de autoridade, que é a outra dimensão da legitimidade política, necessária para governar em qualquer regime. A História mostra que é possível usar a primeira modalidade para construir (ou reconstruir) a segunda, mas isso depende da capacidade do líder de alterar o modo de formação de consensos.

O que se pode dizer ao certo, parafraseando Bobbio e Viroli (sobre Berlusconi), é que a eventual consolidação política de Lula representa algo novo para a jovem democracia brasileira, porque 'pode alterar profundamente o modo de formação de consensos'. Concluo endossando as preferências teóricas e políticas dos autores acima mencionados: 'Muitos comentaristas não vêm nisso nada mau; outros, conhecedores da antiga sabedoria liberal, que teme a concentração de poder (seja quem for que o tenha , ainda que seja o povo), expressam uma forte preocupação. Bobbio e eu (diz Viroli), pertencemos ao segundo grupo' (*).