Título: Por que se grita 'pega ladrão'
Autor: Weis, Luiz
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/09/2006, Espaço Aberto, p. A2

Domingo que vem é dia de acordar com um gosto amargo na boca. Nesse primeiro turno que já se pode chamar de segundo, porque disputado por apenas duas forças políticas reais, ambas puxam o eleitor pelo braço, mas é como se não conseguissem olhá-lo nos olhos: no íntimo, sabem que muito do que se acusam uma à outra é pura verdade.

Se o PT de Lula, promotor do espetáculo do crescimento da delinqüência política no Brasil, também leva a palma pelo conjunto da obra de subordinar a si o Estado nacional, pagador de suas faturas, o PSDB de Alckmin, degradado em clone do PFL, lembra o sujeito que se põe a gritar 'pega ladrão' para parecer o mais decente da praça.

Tomados de udenismo tardio, dizem os tucanos que faltam ao presidente - o 'demônio' em pessoa - condições morais para exercer o cargo. É fato que por ação ou omissão, primeiro; por sua complacência com os seus operadores, depois; e, afinal, por sua tosca tentativa de culpar 'o sistema' pelo mensalão, Lula deu um banho de lama na esperança de que - ele, sim - iria governar de mãos dadas com a ética.

Mas o maior ato singular de corrupção institucional desde o fim da ditadura data de 1997, quando o Planalto fez aprovar a emenda que instituiu a reeleição-já, numa clamorosa ruptura das regras do jogo para dobrar o mandato de Fernando Henrique. Só para comparar, imagine-se Lula, reeleito, levando o Congresso a dar aos presidentes o direito de disputar um terceiro mandato - a contar de 2010.

Perto disso, a compra de votos no episódio é detalhe. Assim como a inauguração, no ano seguinte, do valerioduto, que o PT saberia usar com formidável desenvoltura. O amargor desta eleição, portanto, vem de ter ela se estiolado numa competição moralista entre blocos políticos desprovidos de legitimidade para atirar a primeira pedra nos desafetos.

Ironicamente, a terceira força em cena, o PSOL de Heloísa Helena, com sua santa ira e modos grosseiros, sugere que para ser ético é preciso ser encardido e voltar cem anos no tempo. Não é à toa, porém, que o tema da corrupção se alojou no centro da sucessão, emparedando o debate público sobre questões de muito maior importância política - e muito menor apelo emocional.

Elas se condensam nos dilemas da gestão do Estado, tendo em vista a promoção do sonhado ciclo asiático de crescimento, a melhora dos medonhos padrões do ensino brasileiro e a consolidação dos ganhos sociais do governo Lula. O problema é que, para petistas e tucano-pefelistas, não há como falar de nada disso sem admitir o que talvez mais abominem de parte a parte.

Trata-se da ampla convergência entre eles em relação àquelas prioridades e às linhas gerais de ação em cada caso. Lula proclama que o seu governo bate o de Fernando Henrique em todos os quesitos. Se isso é verdade, pelo menos em parte, não é porque o atual governo tenha jogado fora a 'herança maldita' que disse ter recebido e adotado o seu oposto.

Essa conversa serviu para apaziguar as patrulhas companheiras que não tinham atinado com o espírito da coisa. Ao governo do PT, essa a embromação, só restaria a alternativa de rezar pela mesma cartilha da ortodoxia monetária, fiscal e cambial do segundo mandato de FHC para extirpar os males que ela causou. Algo como o proverbial uso de veneno de cobra para curar picada de cobra.

Depois de um começo em que não se sabia o que era maior - a soberba de querer reinventar a roda ou a incompetência para fazer girá-la -, o governo petista foi acertando o prumo. A competência operacional desde logo demonstrada pelo pessoal da área econômica - reconhecida até pelos inimigos da política de juros altos, superávit opulento e real forte - aos poucos se propagou.

Neste território, não é trivial, por exemplo, fazer o Bolsa-Família chegar a 11 milhões de famílias com essa rapidez. Mesmo que nem todas as que o recebem devessem e nem todas as que deveriam o recebam, o saldo é amplamente positivo para a administração lulista, e o reconhecimento internacional que cerca o programa é apenas merecido. O governo foi bem em outras frentes ainda.

Beneficiado, já se disse, por uma conjuntura externa excepcional, soube fazer as coisas certas para aumentar o emprego, desonerar a cesta básica, expandir o crédito, baixar os custos da construção civil, pagar vagas em faculdades - e completar a obra antiinflacionária do Plano Real. O contingente de pobres na população caiu a níveis inéditos e a renda associada ao trabalho é a mais alta desde 1996.

A retórica alckmista do 'choque de gestão' tem pouco a contrapor a esses êxitos. E assim como Lula escondeu a verdade de que a sua política econômica era mais do mesmo da que a antecedeu, o tucano-pefelista ficou à míngua de um discurso consistente de oposição - menos por incapacidade pessoal do que por escassez de alternativas radicais no plano das grandes formulações.

E assim, à falta de melhor, se espalhou - no país da 'corrupção endêmica', como diz bem o presidente do Banco Mundial, Paul Wolfowitz - a falácia de que, mais do que nunca, a ética na política deve ser a referência fundamental para orientar a decisão do eleitor neste outubro. Pior: sem que haja uma grande facção política capaz de levantar, sem enrubescer, a bandeira da incorruptibilidade.

Quando o combate à corrupção vira a meta das metas, como se devesse dominar a agenda nacional, o resultado é perverso. Primeiro, não se vai a parte alguma se a sociedade - por um misto de má formação histórica, descaso cívico, cultura gersoniana e estratégia de sobrevivência - é tolerante com a maracutaia. Segundo, ergue-se uma barreira ao diálogo futuro entre o governo e a oposição.

Pode-se não gostar da palavra concertação, que o ministro Tarso Genro deu de dizer. Mas é imperativo baixar os teores do conflito político. E arrepia pensar que, se reeleito Lula, o programa da oposição tucano-pefelista possa ser a sua destituição.