Título: A pior de todas as campanhas
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 30/09/2006, Notas e Informações, p. A3

O debate de quinta-feira na Rede Globo foi o fecho apropriado para a mais esquálida campanha presidencial que se viu na história do Brasil democrático. Desde a disputa centrada nas candidaturas Eurico Gaspar Dutra e Eduardo Gomes, em 1945, até a mais recente, de 2002, com Luiz Inácio Lula e José Serra como os principais protagonistas, nunca uma temporada eleitoral se caracterizou por tamanha pobreza de idéias e pela inexistência de qualquer coisa parecida com um confronto substantivo de propostas para o País. Mesmo as três últimas eleições indiretas da ditadura militar tiveram mais vida inteligente do que esta: graças ao ¿anticandidato¿ Ulysses Guimarães em 1973, ao militar dissidente Euler Bentes Monteiro em 1977 e ao oposicionista afinal vitorioso Tancredo Neves em 1985, elas pelo menos serviram para fazer avançar a causa da democracia com justiça social.

Agora, dois fatores se combinaram para produzir o torpor que foram esses intermináveis meses de anticampanha, culminando com o melancólico espetáculo de anteontem, que, como não podia deixar de ser, se resumiu numa sucessão de rajadas contra o alvo ausente, o presidente Lula. Um dos fatores da dormência é de natureza estrutural: o sistema de propaganda eleitoral e as regras dos debates na televisão. O outro, a conduta de Lula, antes e durante o processo. É certo que, na era da videopolítica, conforme a expressão do pensador italiano Giovanni Sartori, a telegenia dos candidatos, o maior ou menor appeal de sua figura e de sua personalidade ¿ uma coisa e outra construídas pelos marqueteiros ¿, tem um peso desmedido nas decisões do eleitorado. E, apesar da relativa convergência das posições políticas, no mundo que já não se divide em torno de grandes e conflitantes concepções sobre a organização da economia e o funcionamento da sociedade, nos países amadurecidos o eleitor é capaz de identificar programas próprios nas diversas correntes partidárias.

No Brasil, o horário eleitoral, no atual formato, é um breve contra o pensamento. A mise-en-scène dos candidatos, gasta como os sambas-enredo de carnavais passados, mais a presença poluidora de uma chusma de nanicos, alguns dos quais autênticos tipos teratológicos, praticamente acabam com qualquer chance de levar o eleitor a usar a cabeça. A sua tentação, satisfeita a curiosidade inicial, é aproveitar o tempo de outras formas. Pior ainda quando a lei obriga as emissoras a acolher nos seus debates os candidatos de papel machê ¿ a turma do 1% de intenções de voto ¿, a menos que consigam induzi-los a abrir mão do seu direito em troca de espaço no noticiário eleitoral. Não raro eles vão apenas para servir de escada a algum candidato competitivo ou de estilingue contra o favorito. O ruído que eles fazem e a fragmentação do programa tiram dele o que em outras circunstâncias pudesse ter de efetivamente informativo para o eleitor chegar a uma conclusão com conhecimento de causa. Este ano, não bastasse isso, entrou em cena o fator Lula.

Este ano, modo de dizer. A campanha da reeleição, ocupando crescentemente os espaços da mídia, começou no primeiro dia do primeiro mandato. Com essa onipresença, mais o seu carisma ¿ sem esquecer os seus êxitos em tolher a inflação e administrar o Bolsa-Família, que só merecem elogios ¿, o presidente reverteu a queda de sua popularidade e da aprovação ao seu governo em fins do ano passado, sob o impacto do mensalão. Lula chegou ao início da campanha com tamanha vantagem em relação aos adversários que a estes só restou concentrar-se no seu calcanhar-de-aquiles, a profusão de escândalos do qual não consegue se desvencilhar. Nem por isso ele se conteve no uso da máquina de fazer bondades. Depois de aumentar o salário mínimo em nível que sabe ser desastroso para as contas públicas, pôs-se a agradar setores econômicos seletos. Ainda há pouco, mandou baixar a taxa de juros (TJLP) cobrada nos empréstimos do BNDES.

Quinta-feira, enfim, ele completou o desserviço de manter limitada a pão e água a dieta de idéias para o voto de amanhã. A sua ausência no debate da Globo não apenas deu aos presentes o pretexto para atacá-lo, qualquer que fosse o tema da hora, como ensinou aos brasileiros mais simples que não há nada de mal quando um governante, confiando no seu prestígio junto a eles, se permite dar as costas ao mais significativo dos eventos de uma campanha eleitoral para o fortalecimento da democracia.