Título: Índio é entrave ao desenvolvimento?
Autor: Novaes, Washington
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/12/2006, Espaço Aberto, p. A2

Há uns 20 dias, no lançamento do livro Populações Indígenas no Brasil (Instituto SocioAmbiental - ISA, 870 páginas), o índio guarani Timóteo Verá Popyguá, para certo espanto da platéia, lembrou que todos os 150 mil hectares do Município de São Paulo ¿eram território indígena¿ - e que hoje seu povo tem apenas 17 milésimos dessa área, exatamente 26 hectares. No Brasil, os índios, que ocupavam todo o território, têm hoje 12,74% dele, diz o livro. Ainda assim, o próprio presidente da República, em discurso recente - ao inaugurar 14 quilômetros de uma rodovia (com licenciamento duvidoso) que beneficia o maior plantador de soja do País, o governador de Mato Grosso (Estado campeão nacional do desmatamento) -, incluiu os índios entre os ¿entraves ao desenvolvimento¿, ao lado de ¿ambientalistas, quilombolas, licenças ambientais, Ministério Público¿.

O livro, que dá seqüência a uma série iniciada em 1980, é um repositório impressionante de informações e análises sobre a chamada questão indígena, sobre essa riqueza cultural que nenhum outro país possui (226 etnias, 180 línguas - grande parte delas ameaçada de extinção -, 167 terras ainda em processo de reconhecimento). Culturas que, na crise de padrão civilizatório que vivemos, deveriam ter seu papel destacado e reconhecido como o formato cultural mais eficiente na conservação da biodiversidade, como tantos estudos têm mostrado.

Mas não é assim. Os conflitos com as culturas indígenas são a cada dia mais freqüentes no noticiário. A taxa de suicídios entre índios é o dobro da média nacional (Correio Braziliense, 31/8). Os gastos federais com demarcação de suas terras só têm decaído, de R$ 67,1 milhões em 2001 para R$ 42 milhões em 2006. É muito grave o avanço do desmatamento: 43% no entorno de suas áreas nas bacias hidrográficas de Mato Grosso, como mostra recente levantamento do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e do Instituto Centro de Vida (ICV); nas bacias do entorno do Parque Indígena do Xingu é de 32%.

Não foram necessárias nem 48 horas para que os índios começassem a manifestar sua indignação com as palavras do presidente da República. Também para que 122 ONGs e redes de instituições respondessem em termos duros ao presidente - a quem, segundo uma delas, ¿falta juízo socioambiental¿. Ou para que o Ibama demonstrasse que não é responsável por ¿atrasos¿ no licenciamento de hidrelétricas. Ou para que o Ministério Público dissesse que está cumprindo seu dever em processos nos quais a decisão cabe à Justiça, não a ele. Como no próprio caso de uma das hidrelétricas previstas para rios formadores do Xingu, a Paranatinga II, no Rio Kuluene - um dos casos em que o processo de licenciamento ambiental é apontado como ¿entrave¿.

Em primeira instância, a Justiça, acionada pelo Ministério Público, embargou a obra, pelos prejuízos ambientais e culturais às populações do Parque Indígena do Xingu e aos xavantes. Mas uma liminar em segunda instância liberou-a. Agora, um dos cientistas contratados pela própria empresa - Juarez Pezutti, da Universidade Federal do Pará -, em carta ao ISA, diz que ¿não há comprovação de que a escada para subida de peixes¿ (apresentada pela empresa construtora como solução para os problemas com as espécies que migram) seja ¿um mecanismo que vai garantir a migração de grandes cardumes¿. Não há, diz ele, ¿nenhum estudo demonstrando isso¿. E ¿os impactos negativos sobre a pesca são substanciais¿, especialmente no caso dos ¿grandes bagres, tão importantes para os xinguanos¿. Para esse cientista, ¿o que consta na literatura é que tais sistemas não resolvem o problema¿ - ao contrário do que está dito pela empresa. E Paranatinga II é apenas uma das seis hidrelétricas planejadas para os rios que correm para dentro do parque e que os índios não aceitam.

Em julho, numa audiência na Procuradoria-Geral da República, 34 etnias haviam pedido a suspensão - até que elas se possam manifestar - de projetos de infra-estrutura que podem prejudicá-las. Mas suas palavras caíram em ouvidos moucos, pelo menos na área do Executivo - tanto que numerosas rodovias na Amazônia questionadas pelos danos que causarão à floresta continuam a freqüentar o planejamento e os orçamentos federais.

E, no entanto, essa conservação da biodiversidade deveria estar no centro de uma estratégia brasileira para os novos tempos, como já tem sido comentado aqui. Se esse é o fator escasso no mundo hoje - recursos e serviços naturais -, e se o Brasil os tem em relativa abundância, deveria dar prioridade absoluta à sua conservação.

Além do mais, as áreas ainda preservadas na Amazônia e em suas bordas são e serão vitais para a questão do clima, como tantos cientistas têm demonstrado. James Hansen, renomado cientista da Nasa, reiterou há poucos dias que temos apenas uma década para conter um desastre climático impensável. Sir Nicholas Stern, ex-economista-chefe do Banco Mundial, em seu relatório discutido na Convenção do Clima, também afirmou que, se não enfrentarmos imediatamente o problema, com recursos equivalentes a 1% do produto bruto mundial, sofreremos uma megarrecessão econômica que poderá reduzir em até 20% esse produto mundial.

Nesse quadro, portanto, os índios e suas áreas são decisivos. E fazem lembrar o brilhante Ailton Krenak. Ele se refere ao mito fundamental dos ianomâmis, que os coloca como suportes da grande abóbada superior do universo, com a função de impedir que ela caia sobre a abóbada inferior e a esmague - e, com ela, todos os seres vivos. ¿No dia em que não houver lugar para o índio no mundo¿, diz Krenak, ¿não haverá lugar para ninguém¿.