Título: Rachadura no G-20
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Fonte: O Estado de São Paulo, 24/11/2006, Notas e Informações, p. A3

Para desencalhar as negociações comerciais da Rodada Doha, cada vez mais próximas de um custoso fracasso, não basta aproximar os interesses de ricos e pobres em relação à questão agrícola. Sobre essa questão, os emergentes também estão divididos. Não há mais como ocultar as diferenças entre países preparados para competir no mercado internacional do agronegócio, como Argentina, Brasil e Uruguai, e aqueles empenhados em manter protegida sua produção, como a Índia. Argentinos e uruguaios têm manifestado claramente seu desconforto diante da situação, enquanto o governo brasileiro insiste em pôr panos quentes e disfarçar a situação. Mas o problema é evidente e foi exposto sem meias-palavras pelo diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), Pascal Lamy, nesta quarta-feira.

As negociações globais ficarão mais fáceis, disse Lamy, se os membros do Grupo dos 20 (G-20) resolverem suas divergências. Seus comentários foram feitos em Montevidéu, onde foi comemorado, nesta semana, o 20º aniversário do início da Rodada Uruguai, encerrada em 1994. As normas comerciais atualmente em vigor e a própria OMC foram estabelecidas nessa rodada.

Há apenas ¿nuances de posições¿ e não divergências, disse o chanceler brasileiro Celso Amorim, procurando mais uma vez disfarçar as fissuras no bloco dos emergentes. Fechar um acordo no G-20 a respeito dessas questões seria ¿pôr o carro adiante dos bois¿, disse o ministro. ¿A Rodada Doha só chegou aonde chegou graças ao G-20. Sua preservação é do interesse de toda a OMC¿, acrescentou.

Essa argumentação conta apenas uma parte da história. O G-20, criado em 2003, foi a mais bem-sucedida iniciativa diplomática do Brasil nos últimos quatro anos. O grupo reuniu e coordenou economias emergentes interessadas na reforma das políticas agrícolas do mundo rico. Seu grande objetivo é conseguir a abertura dos mercados mais desenvolvidos e a eliminação - ou redução significativa - dos subsídios aos produtores e exportadores, principalmente dos Estados Unidos e da Europa.

Apesar de algumas deserções e da mudança de sua composição, o G-20 exerceu um papel de relevo na Rodada Doha e todos os principais negociadores têm reconhecido esse fato. Não há como negar esse crédito ao Itamaraty. Mas os países do bloco só compartilham interesses limitados tanto nas questões agrícolas quanto nas industriais e de serviços. As diferenças também são consideráveis e sua importância deveria tornar-se evidente com o progresso das negociações.

Índia e China são menos competitivas na produção agrícola do que os países do Mercosul. Mas coube ao governo indiano tomar a iniciativa de exigir o direito de manter barreiras protetoras de sua agricultura. Além das salvaguardas para produtos ¿sensíveis¿, pretendidas também pelos europeus e pelos americanos, autoridades indianas defenderam a criação de uma categoria de produtos ¿especiais¿ cultivados por pequenos produtores.

Objetivamente, esse tipo de barreira não interessa às economias mais competitivas, mas a diplomacia brasileira decidiu ceder às pressões indianas. O Ministério do Desenvolvimento Agrário aproveitou a brecha e propôs a criação de uma lista de produtos especiais também para o Brasil. É um erro evidente enveredar por esse caminho. Não tem sentido enfraquecer exatamente nessa área a capacidade negociadora do País. Uruguaios e argentinos estão muito mais certos nesse ponto.

Mas há outras divergências importantes no interior do G-20. O governo brasileiro poderia ousar mais nas negociações sobre indústria e serviços. Mas ainda será preciso acertar as posições com os demais sócios do Mercosul e a articulação com a Argentina poderá ser complicada. Se o governo argentino insiste em manter barreiras no interior do bloco, é provável que rejeite uma abertura maior do setor industrial.

A rodada não poderá avançar, naturalmente, sem melhores ofertas dos Estados Unidos e da União Européia para o comércio agrícola. A vitória democrata nas últimas eleições americanas aumenta o risco de uma recrudescência do protecionismo nos Estados Unidos. Tudo somado, é difícil ser otimista em relação ao progresso da Rodada Doha nos próximos meses.