Título: A velha CLT e suas falhas
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2006, Espaço Aberto, p. A2

É difícil e arriscado apontar falhas em santos e ídolos. Pessoas, obras ou objetos, elevados à condição de modelos de perfeição e eficiência, são colocados em altares santificados, o que tende a torná-los imunes a análises críticas, ainda que desenvolvidas com isenção e espírito construtivo.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é exemplo inigualável de ícone que resiste ao tempo, aos acontecimentos e às mudanças, por tratar-se de imperecível marco da conquista da cidadania pela então nascente classe trabalhadora brasileira.

Durante a era Vargas, legislações de grande envergadura foram aprovadas com a facilidade proporcionada pelos decretos-leis, isentos da análise do Poder Legislativo, posto em quarentena de 1937 a 1945. Pertencem ao período o Código de Processo Civil de 1939, o Penal de 1940, o de Processo Penal de 1941, a Lei de Introdução ao Código Civil de 1942, e a CLT de 1943, para lembrar aqueles que compõem a cimeira do edifício jurídico, ao lado do Código Civil e abaixo da Constituição.

A ¿Bíblia do Trabalhador¿ - denominação dada à CLT pelo ministro Marcondes Filho - apresenta, todavia, evidentes falhas de origem, que se acentuaram no decurso do tempo. Na introdução, em que estão lançados os fundamentos a partir dos quais foi projetada e construída, o artigo 2º define empregador como ¿a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços¿. Até aqui, o enunciado é isento de erros. O problema manifesta-se no parágrafo 1º, que prescreve: ¿Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados.¿ Ora, como equiparar poderosas redes de supermercados ao comércio varejista; oficinas mecânicas e de serralheiros com montadoras multinacionais de veículos; o borracheiro e seu ajudante com a fábrica de pneumáticos; a complexa sociedade de advogados com o típico profissional liberal; o minifúndio rural com o agronegócio?

Equívoco da mesma gravidade é encontrado na definição de empregado. Diz o artigo 3º da CLT que ¿Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário¿. A definição está correta, mas o mesmo não pode ser dito do parágrafo único, segundo o qual ¿Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual¿. Em 1943, quando a CLT foi aprovada, talvez não ficassem nítidas as distinções entre intelectuais, técnicos, e operários. Hoje, contudo, não há como ignorar a multiplicidade de carreiras e especializações, e as extremas diversidades de salários, remunerações, benefícios e vantagens, entre os que se acham na base e os que atingiram o topo da pirâmide salarial.

Inspirados na crença da cisão da sociedade em classes homogêneas e antagônicas, os autores da CLT não admitiram que pessoas jurídicas constituídas com fins lucrativos nada têm em comum com associações fundadas sem objetivos econômicos, e que ambas não se assemelham aos profissionais liberais. Desconheceram, por outro lado, os desníveis entre micro, pequenas, médias e grandes empresas. Os empregadores foram tidos como auto, súper ou hipersuficientes, ao passo que os empregados foram tratados como hipossuficientes, equiparáveis àqueles que, segundo o Código Civil, são ¿incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer¿, à semelhança dos ébrios habituais, viciados em tóxicos, deficientes mentais com discernimento reduzido, excepcionais, pródigos e retardados (artigo 4º).

Outro grave defeito localiza-se no tratamento dispensado às negociações intersindicais ou entre sindicatos e empresas. Embora a Constituição ordene, no artigo 7º, XXVI, ¿o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho¿, a eficácia desses documentos, como fontes de direitos e obrigações, submete-se às incertezas de decisões proferidas em última instância pelo Judiciário trabalhista, como se deu, recentemente, com os Programas de Demissões Incentivadas (PDIs), ajustados pelo Banco do Estado de Santa Catarina (Besc) com os sindicatos de bancários.

O Besc foi incluído em programa federal de desestatização e necessita reduzir o número de funcionários. Para fazê-lo, sem gerar problemas sociais, negociou com os trabalhadores programas de desligamento voluntário, nos quais proporcionou benefícios superiores aos da lei, tendo como interlocutores os respectivos sindicatos. O Tribunal Superior do Trabalho (TST), por escassa diferença de votos, negou aos acordos o alcance e validade que lhes deram as partes interessadas, o que implica, em última análise, desestímulo à concessão de vantagens a trabalhadores que concordam com a inclusão em programas de dispensas incentivadas.

Esses e outros conhecidos equívocos da CLT fazem do País o recordista indiscutível em ações trabalhistas, e infrator dos compromissos assumidos com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), que tem na Convenção nº 98, sobre liberdade sindical e negociações coletivas, um dos documentos fundamentais.

Preservamos leis ultrapassadas ou removemos os obstáculos opostos à modernização, como exigem os desafios do desenvolvimento? É a pergunta que está no ar, e que somente o presidente da República e o Congresso Nacional poderão responder.