Título: Aparelhamento e louvação
Autor: Di Franco, Carlos Alberto
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/12/2006, Espaço Aberto, p. A2

Estava na Costa Rica. Lá, participei de interessante seminário promovido pela Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP). O encontro foi aberto por Oscar Arias, presidente da República e Prêmio Nobel da Paz em 1987. Impressionou-me a qualidade intelectual e a entranha democrática do presidente Arias. Suas palavras foram um panegírico à liberdade de imprensa. ¿Junto com eleições periódicas e com a separação dos Poderes, a liberdade de imprensa é o instrumento mais poderoso para realizar, efetivamente, uma das grandes conquistas da civilização ocidental: a idéia de que o poder político, se pretende ser legítimo, deve estar submetido a limites, e que o poder absoluto, como intuía Lord Acton, não é senão uma forma absoluta de corrupção. Quanto mais livre for a imprensa, mais limitado estará o exercício do poder e maior será a probabilidade de que nossas liberdades individuais permaneçam a salvo¿, sublinhou o presidente.

O discurso de Arias tem a força da coerência. Na Costa Rica a democracia é sólida e operativa. Dois ex-presidentes, julgados e condenados por crime de corrupção, estão na cadeia. Guerra à impunidade e educação de qualidade fizeram daquele pequeno país um belo modelo de democracia possível. Lá estando, caro leitor, recebi duas penosas notícias do Brasil. Um contraponto nada edificante. ¿PT deseja Radiobrás mais partidária¿ e ¿Lula vira cabo eleitoral de Chávez e ataca a imprensa¿.

As duas manchetes foram um soco no estômago. Trouxeram-me de volta a uma realidade que eu desejaria que estivesse superada. Não está. Por isso, aqui vai meu comentário desta quinzena. Comecemos pela Radiobrás.

Setores do PT querem aproveitar a reforma ministerial para mexer na direção da Radiobrás. A estatal de comunicação do governo não é suficientemente ¿aparelhada¿, segundo esses petistas. Eles defendem que a Radiobrás faça mais publicidade dos atos oficiais. O presidente da estatal, Eugênio Bucci, encaminhou ao presidente Lula uma carta em que pôs seu cargo à disposição.

Eugênio Bucci, jornalista que ocupou importantes cargos na imprensa brasileira, é um profissional sério e competente. Sua atividade à frente da Radiobrás tem sido marcada pelo profissionalismo. Ele procurou implantar na estatal um modelo de jornalismo republicano. Entende que a informação deve ser um serviço público e não uma louvação de governos e, muito menos, de partidos.

A ira dos petistas só engrandece a figura de Bucci. Eles defendem uma Radiobrás aparelhada. Mas o que aconteceu, de acordo com setores petistas, é que na campanha presidencial até reportagens desfavoráveis ao presidente Lula foram veiculadas pela estatal de comunicação. A Radiobrás foi criada em 1975, ainda durante o regime militar, pelo então presidente Ernesto Geisel. Nota dez para Eugênio Bucci. Nota zero para os xiitas do PT. Esperemos que Bucci não saia. Se sair, será mais uma evidência de que o modelo autoritário de comunicação estará ganhando a parada.

Segunda má notícia: os ataques de Lula à imprensa brasileira em palanque estrangeiro. Em sua viagem eleitoral à Venezuela (o respeito aos assuntos internos dos países recebeu um tiro de morte desfechado pela multinacional Lula, Morales, Chávez & Cia.), para apoiar a reeleição do companheiro latino-americano, o presidente Lula se comparou ao ditador venezuelano, no que diz respeito ao ¿preconceito¿ sofrido por parte da imprensa, empresários, banqueiros e dos ex-governantes.

Trata-se de mais uma declaração de Lula em escancarada linha de colisão com o seu anunciado desejo de inaugurar um relacionamento mais civilizado com os meios de comunicação. Na verdade, caro leitor, o presidente Lula, ao contrário de seu colega da Costa Rica, manifesta crescente desconforto com aquilo que representa um dos pilares da democracia: a liberdade de imprensa. Não admite críticas. Só aceita louvação. Seu discurso pós-eleitoral trouxe uma aragem de esperança. Ao reconhecer que toda sua saga política se deveu ao amplo espaço que sempre obteve na imprensa, Lula manifestou a intenção de melhorar sua relação com os jornalistas. Os fatos demonstram que é muito longo o caminho que separa a teoria da prática.

Afinal, caro leitor, qual é a perversidade que deve ser debitada na conta dessa imprensa tão questionada pelo presidente da República? Creio, sinceramente, que os meios de comunicação, sem as mordaças que alguns têm defendido, têm tido papel decisivo no processo de purificação, demorado e pedregoso, dos nossos costumes políticos. A mídia não é antinada e não está a serviço de legendas partidárias. Causam-nos profunda repugnância quaisquer tentativas de engajamento. Como dizia Rui Barbosa no seu magnífico texto A imprensa e o dever da verdade, a imprensa ¿é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que malfazem e tramam, devassa o que lhe sonegam, ou roubam. (...) O poder não é um antro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e sim uma liça. (...) Para a Nação não há segredos; na sua administração não se toleram escaninhos; no procedimento dos seus servidores não cabe mistério; e toda encoberta, sonegação ou reserva, em matéria de seus interesses, importa, nos homens públicos, traição ou deslealdade aos mais altos deveres do funcionário para com o cargo, do cidadão para com o país¿.

Se o presidente Lula, entre um palanque e outro, se der ao trabalho de ler o pensamento de Rui Barbosa, um texto direto e sem ambigüidades, certamente encontrará muitos motivos para melhorar, de fato, e não só com palavras, suas relações com a mídia.