Título: O incrível candidato que encolheu
Autor: Nêumanne, José
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/11/2006, Espaço Aberto, p. A2

Quando o ex-governador Geraldo Alckmin alcançou 41% dos votos válidos e forçou a realização do segundo turno, por ter faltado ao adversário, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, 1,5 ponto porcentual para vencer logo no primeiro, ele conseguiu um feito: poucos esperavam que chegasse tão longe. Passou a ser, então, factível, embora ainda pouco provável, que marcasse outro tento: conquistar os votos dos eleitores dos candidatos que disputaram o primeiro turno, por se ter evidenciado uma onda anti-Lula no País, e, se possível, se apoderar de alguns do adversário para chegar à vitória e subir a rampa do Planalto. Menos de um mês depois, verificou-se um feito, mas pelo avesso: além de não conquistar votos do primeiro colocado, ele ainda perdeu mais de 2 milhões dos próprios. E a vantagem de Lula, de 7 milhões há um mês, espichou para 20 milhões: assim, Alckmin entrará para a história como o incrível candidato que encolheu quando poderia até se expandir.

Ninguém deve omitir a obviedade de que qualquer candidato à reeleição tem vantagens demais sobre o oponente. Mas esse, certamente, não é um problema de Lula nem do PT, pois o presidente e seu partido sempre foram contra esse instituto e quem o importou, para desequilibrar a balança para o lado do governante, foi o antecessor e adversário Fernando Henrique. Ao vestir camiseta com a marca da Petrobrás e do Banco do Brasil para garantir que não privatizaria as duas estatais, aceitando a provocação petista, o candidato do PSDB cometeu o mais óbvio dos suicídios políticos: entregou ao oponente a autoria da pauta da própria campanha. Após haver levado o presidente às cordas no primeiro assalto (com o perdão da má palavra), o tucano foi dormir e, quando acordou, quem estava no córner não era mais o outro, mas ele.

Lula fala, com fé e vontade, uma linguagem que o povo entende e com a qual se identifica, enquanto Alckmin transmite sempre a impressão de que ele próprio não acredita no que diz. O primeiro saiu com confortável vantagem nas pesquisas e o outro cometeu a imprudência de contar com a possibilidade de virar o jogo investindo exclusivamente nos 45 dias do horário eleitoral gratuito. Para isso se esperava que chegasse arrebentando no rádio e na televisão. No entanto, foi o presidente que protagonizou uma campanha eficiente do ponto de vista da comunicação, enquanto chamar a do ex-governador de medíocre seria um exagero de otimismo, pois, de tão fraquinha, a coitada não cabe sequer numa palavra que lembre meio. Boa ou má, a obra do governo petista se expunha a julgamento. Em momento nenhum o tucano pretendente ao posto contou algo que se lhe pudesse contrapor. Esta eleição foi a crônica do desastre anunciado para a classe média, que contava com Alckmin para impedir o massacre que se anuncia no próximo quadriênio de mais do mesmo populismo assistencialista.

A avalanche de votos, que anula as possibilidades de convocação de um ¿terceiro turno¿ para investigar falcatruas perpetradas pela patota petista no primeiro mandato do companheiro, deveu-se, além das condições acima descritas, a outra, que pode ter tido relevância maior: a fé na capacidade de esmagar o adversário apelando para o ¿samba de uma nota só¿ do discurso da moralidade pública.

Os tucanos de fina plumagem faltaram a aulas fundamentais de História da República que dão conta do persistente malogro das tentativas da classe média de moralizar a gestão pública: Eduardo Gomes duas vezes, contra Eurico Dutra, em 1945, e Getúlio Vargas, em 1950; e Juarez Távora contra Juscelino Kubitschek, em 1955. A corrupção só foi boa vilã de palanque quando manipulada pela finória hipocrisia de populistas da estirpe de Jânio Quadros, em 1960, e Fernando Collor, em 1989.

Isso até seria perdoável, contudo, se a pseudo-social-democracia cabocla tivesse a mínima noção do que se passa nas ruas das metrópoles brasileiras ou nas roças dos grotões ermos dos sertões gerais deste país de maioria pobre e desinformada. O cidadão brasileiro que consagrou Luiz Inácio Lula da Silva nas urnas de novo convive com o crime e se familiarizou com a negligência em relação a ele por parte das autoridades constituídas desde sempre. O que um cidadão que deve obediência ao chefão do tráfico para sobreviver pode estranhar no noticiário sobre ¿mensalão¿, ¿sanguessugas¿ ou o falso dossiê que deu aos tucanos a ilusão de mandar Lula e dona Marisa para longe dos jardins com estrela vermelha do Alvorada ou da churrasqueira da Granja do Torto?

Neste país, onde a lei que mais se respeita é aquela enunciada pelo canhotinha Gérson, louvando quem leva vantagem em tudo, pretender ganhar eleição apelando para conceitos aristotélicos de ética (substantivo empregado à exaustão no jargão tucano, em vez de outros menos nobres, mas de fácil entendimento, como roubo, furto, assalto e congêneres) é de uma ingenuidade tosca, à beira da indigência mental. Que motivos teriam as donas de casa que passaram a apoiar os vilões de telenovela, segundo pesquisas qualitativas de opinião, para deixarem de sufragar o pai zeloso que nem repreende o filho que recebe uma bolada razoável de uma empresa que mantém vínculos com o Estado por ele chefiado?

Tal foi a insistência com que Geraldo Alckmin citou o ¿mestre¿ Mário Covas na campanha que ficou nítida, para quem ouviu a ladainha, a impressão de que os tucanos esperavam um milagre a ser obrado pelo ilustre defunto. Mas o milagre não foi obrado. E, assim, após o triunfo de Lula, os brasileiros continuam sabendo que os vivos conduzem os mortos à última morada, e não o oposto. Para inverter isso jamais bastaria a profecia de um vidente: seria o caso de o Nazareno em pessoa antecipar a volta para presidir o Juízo Final.