Título: Os desafios do envelhecimento, por um brasileiro que sabe envelhecer
Autor: Iwasso, Simone
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/12/2006, Vida&, p. A34

Há 32 anos morando entre Inglaterra e França, Alexandre Kalache não perdeu o jeito despojado e o bom papo do garoto de classe média que cresceu na praia de Copacabana, foi militante estudantil na ditadura e viajou pelo Nordeste durante a faculdade. Hoje, com dois filhos, uma neta e 61 anos, mas aparentando pelo menos dez a menos, ele continua fascinado pelo Brasil, não vive sem goiabada e farofa, e, citando Oscar Wilde, diz que resiste à tudo, menos às tentações. Kalache é PhD em epidemiologia pela Universidade de Oxford, foi fundador da Unidade de Epidemiologia do Envelhecimento da Universidade de Londres e criador do primeiro mestrado em Promoção da Saúde da Europa. Atualmente, é o responsável pelo Programa de Envelhecimento e Longevidade da Organização Mundial da Saúde (OMS), idealizando projetos baseados no envelhecimento ativo, com autonomia e independência.

Informal e experiente em apresentações, domina a técnica de quebrar o gelo e aproximar interlocutores: ¿Envelhecer é bom. A única opção para não envelhecer é morrer cedo¿, disse, na sexta-feira, a profissionais e usuários do Centro de Referência do Idoso de São Miguel Paulista, após uma travessia de hora e meia do hotel onde estava hospedado na zona sul até o bairro, no meio da zona leste.

Lá, acertou detalhes de um projeto piloto que a equipe fará em parceria com a OMS (leia texto ao lado). ¿Soube que eles fariam o evento e que estaria em São Paulo e me convidei. Eu preciso dessa resposta. Esse contato alimenta meu trabalho. Inclusive para eu não me deixar levar pela bolha que é Genebra. Em 20 anos em Oxford, cansei de ver colegas acadêmicos discutindo como combater a malária na Tanzânia sem nunca terem ido até lá.¿

Um dia antes, Kalache havia dado uma palestra, de paletó, gravata e microfone nas mãos, para executivos no Hotel Unique, no Fórum da Longevidade organizado pelo Bradesco Vida e Previdência. Lá, abordou a importância de políticas que incluam a área social, econômica e de saúde para responder à atual mudança na pirâmide demográfica não só do Brasil, mas do mundo.

¿O grande desafio do século 21 é o envelhecimento. E foi a grande conquista do século 20. Mas como fazer para que essa grande conquista de um século não se torne o grande problema do outro?¿, questionou, acrescentando que estava nas mãos também da iniciativa privada fazer parcerias com o poder público em prol de mudanças.

Depois foi além e cutucou o Estado: ¿Não se pode, por exemplo, culpar os idosos pelos problemas da Previdência. O errado é o sistema que permite que pessoas com 45 anos, em plena capacidade de trabalho, se aposentem e vivam mais 30 anos recebendo salário integral.¿

Há dois dias, estava reunido com o ministro da saúde da Austrália para discutir o andamento de um projeto que prevê mudanças urbanas para incluir o idoso. E, amanhã, falará para intelectuais na Academia de Ciências de Nova York. ¿Sei que estou num palco internacional. E que é uma função como a de um embaixador. Às vezes quebro a cara, mas tenho conseguido perceber avanços e levantar fundos para os programas¿, conta.

¿Há 10 anos seria impossível mobilizar pessoas para ouvirem sobre envelhecimento. E eu sei porque tentei fazer isso. Hoje, existe uma consciência maior. O Brasil, por exemplo, vai dobrar sua população de idosos em 17 anos. A França fez isso em seis gerações¿, afirma. Nesse ponto, retoma um alerta que fez ainda nos anos 80, quando começou a se especializar no assunto: ¿Os países desenvolvidos ficaram ricos antes de envelhecer, os que estão em desenvolvimento estão envelhecendo sem terem enriquecido.¿

RAÍZES

Nas aulas acadêmicas ou palestras para o público leigo, ele vai soltando os números, como os divulgados anteontem pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostrando que a expectativa de vida do brasileiro chegou aos 71,9 anos. E que cresceu 61% o número de famílias onde os idosos são os grandes responsáveis pela renda.

Mas suas exposições nunca são apenas técnicas ou puramente científicas. Kalache fala de solidariedade, relembra seus ouvintes das mulheres cuidadoras que existem em toda família, cita exemplos pessoais e mostra a foto de uma de suas grandes paixões na vida, a madrinha Silvina, que morreu aos 105 anos.

Com origens familiares que misturam libaneses, sírios, portugueses e italianos, se orgulha de ter crescido em uma família onde os idosos eram ouvidos e respeitados. ¿São mediterrâneos, adoravam contar histórias. Cresci com isso¿, diz, lembrando que a avó tinha 13 irmãos e o avô, 17.

A experiência pessoal emergiu também na pesquisa científica. Em Oxford, Kalache descobriu que os geriatras que se sentiam realizados eram aqueles que tinham convivido com idosos em suas famílias. E que a maneira como a geriatria era apresentada aos estudantes os afastava desse contato. A pesquisa rendeu o convite que o fez professor e, anos depois, PhD. Graças à insistência em estudar o envelhecimento, criou redes de pesquisa, iniciou cursos e chamou a atenção da OMS.

¿Quando cheguei em Oxford, procurei o Kalache porque era um brasileiro referência lá. Levei meu projeto sobre mortalidade infantil. Quando eu terminei de mostrar minha idéia, ele disse: `É um trabalho bom, mas você já pensou em trabalhar com velhos?¿¿, relembra o geriatra Luiz Roberto Ramos, coordenador do Centro de Estudos do Envelhecimento da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). ¿Eu respondi que era pediatra! Mas depois de uma hora com ele, desse jeito que ele tem que convence todo mundo, resolvi mudar.¿

Ramos, que depois da volta ao Brasil coordenou a primeira avaliação de idosos feita no País, não é o único ex-aluno de Kalache. Parte dos geriatras hoje nas universidades brasileiras passou pelo curso criado em Londres, nos anos 90.

¿Ele começou a trabalhar com o envelhecimento estudando aspectos de saúde, sociais e comportamentais quando muito pouca gente se preocupava com isso. Quando foi para a OMS levou essa visão de envelhecimento ativo, mudando o programa que eles tinham, que era focado muito na patologia do idoso¿, diz a geriatra Andréa Prates, coordenadora-executiva do Centro Internacional de Informação para o Envelhecimento Saudável (Cies).

Aficionado pelo trabalho, viajando constantemente, Kalache hoje mora numa região rural na fronteira da França com a Suíça - a uma distância de 17 km da sede da OMS, para onde vai todos os dias. Nas férias, quando não está no Brasil, seu reduto é a Espanha, onde tem uma casa e adotou uma comunidade local como segunda família.

Lê, cozinha e planeja a própria aposentadoria da organização, prevista para o ano que vem. O projeto é voltar para o Rio e criar um centro de pesquisa na Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). ¿A maternidade onde nasci agora é um hospital geriátrico, em Copacabana. Talvez meu destino seja terminar no lugar de onde vim.¿