Título: Os desacertos do CNJ
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Fonte: O Estado de São Paulo, 08/12/2006, Notas e Informações, p. A3

Concebido para promover o controle externo do Poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tomou decisões tão corporativas e absurdas ao longo dos últimos meses que está chegando ao paradoxo de se converter num órgão responsável pelo descontrole interno da instituição. Com iniciativas desastradas, exorbitando de suas prerrogativas e muitas vezes passando por cima da Constituição, o Conselho vem decepcionando aqueles que, como nós, desde o início apoiaram firmemente sua criação, por ver nele um mecanismo capaz de modernizar os tribunais.

O último incidente provocado pelo CNJ ocorreu na terça-feira. Trata-se de um ofício informando ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que, da verba suplementar de R$ 77 milhões por ele pedida para pagamento de pessoal, seriam liberados apenas R$ 60 milhões. Alegando que o Conselho não tem competência para interferir na atuação administrativa e financeira do Judiciário e que o artigo 99 da Constituição assegura autonomia aos tribunais superiores, o presidente do TSE, Marco Aurélio Mello, mandou uma contundente resposta à presidente do órgão, ministra Ellen Gracie, acusando-a de 'extrapolar' suas funções. 'É preciso repor as coisas no seu devido lugar para que não reine a babel', escreveu Mello.

Há dois meses, o CNJ aprovou uma resolução não menos exorbitante, autorizando os Tribunais de Justiça (TJs) a regulamentar as férias coletivas de seus magistrados. Ao justificar essa medida, a ministra Ellen Gracie afirmou que o fim das férias coletivas, imposto pelo artigo 93 da Constituição, acarretou gastos extras para essas cortes. Lembrando que preceitos constitucionais somente podem ser alterados por emendas aprovadas pelo Congresso, em dois turnos e com o voto de três quintos dos parlamentares, o STF, na quarta-feira, obrigou o CNJ a revogar a resolução que deixava a Justiça estadual à vontade para fazer o que a Constituição proíbe.

Nem assim o Conselho aprendeu a lição. Em vez de se limitar a exercer seu papel fiscalizador, ele insistiu em continuar legislando em favor dos interesses corporativos da magistratura, desta vez em matéria salarial. Embora a Constituição tenha fixado em 90,25% dos vencimentos de um ministro do STF o teto do funcionalismo dos Estados, o CNJ decidiu esta semana que os TJs podem desprezar esse porcentual no cálculo dos salários dos desembargadores aposentados contratados para ocupar cargos de confiança, assessorando colegas da ativa. O exemplo foi seguido pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que também autorizou promotores estaduais que acumulam funções a furarem o subteto.

As duas decisões são tão acintosamente inconstitucionais que o próprio presidente do CNMP, o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, anunciou que recorrerá ao Supremo. E, lembrando que órgãos meramente administrativos como o CNJ e o CNMP não podem inovar em matéria legislativa, alguns ministros do STF, na sessão plenária da quinta-feira, praticamente anteciparam seu voto. 'Nenhum órgão do Poder Judiciário tem legitimidade para ignorar o que a Constituição estabelece', disse o ministro Celso de Mello. 'Não há conveniência administrativa que possa prevalecer sobre a Constituição', afirmou a ministra Carmem Lúcia Rocha. 'Não é possível que, no Estado de Direito, um órgão administrativo se expresse (por meio de resoluções) com força de lei', advertiu o ministro Ricardo Lewandowski.

Tendo iniciado suas atividades com o pé direito, coibindo o nepotismo judicial, o CNJ começou a perder o rumo quando passou a desprezar a Constituição para atender a certos interesses da magistratura. A proposta que melhor ilustra o viés corporativo do órgão foi a de aumentar os vencimentos de seus próprios integrantes, sob a forma de pagamento de jetons. Se tivesse sido aprovada, ela elevaria o salário da ministra Ellen Gracie a quase R$ 30 mil, cerca de R$ 6 mil a mais do que o teto do funcionalismo federal. Diante da reação negativa, a presidente do STF retirou a proposta da pauta.

É uma pena que um órgão criado com tão boas intenções, como o CNJ, tenha apresentado um balanço tão negativo desde sua criação, há dois anos. Isso dá a medida do desafio que é a modernização do Judiciário.