Título: A implosão do Mercosul
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Fonte: O Estado de São Paulo, 20/12/2006, Notas e Informações, p. A3

O funeral do Mercosul ficará bem mais animado com a participação do boliviano Evo Morales, discípulo de Hugo Chávez, que, confessadamente, nele entrou para implodi-lo. Em breve, os sócios do bloco poderão queimar os Tratados de Assunção e de Ouro Preto e assinar um novo pacto regional, de inspiração bolivariana e contrário a quaisquer acordos comerciais com os principais mercados do mundo rico. A Venezuela já iniciou o processo de incorporação plena ao bloco. O ingresso da Bolívia foi aprovado no último fim de semana, durante reunião de chanceleres e ministros do Comércio, em Brasília. Nenhuma das duas inclusões contribui para a realização dos objetivos iniciais do Mercosul. Esses objetivos foram formulados quando os governos do Brasil e da Argentina ainda pensavam em criar uma sólida base regional para a inserção nos mercados globais. Dessa ambição já quase não se fala, embora permaneça na agenda, oficialmente, a negociação de um acordo comercial com a União Européia. A idéia da Área de Livre Comércio das Américas (Alca) é coisa do passado, como observou há poucos dias, em tom de vitória, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Mas o entendimento com os europeus também deverá ser mais difícil do que antes. Eles anunciaram a intenção de incluir na agenda temas sociais e ambientais. Já seria complicado conciliar os interesses brasileiros e argentinos em relação às concessões na área industrial. Agora será preciso levar em conta as opiniões e as bandeiras políticas do presidente Hugo Chávez e de seu seguidor boliviano.

Os dois novos sócios participarão oficialmente, quando sua incorporação for completa, de uma união aduaneira fictícia. Quinze anos depois da assinatura do Tratado de Assunção, o Mercosul nem chega a ser, de fato, uma zona de livre-comércio bem-sucedida. O protecionismo ainda vigora entre vizinhos. As quatro economias do bloco original deveriam ser em grande parte complementares, mas a idéia de cadeias produtivas ainda é uma abstração. Os sócios menores, Uruguai e Paraguai, têm uma longa lista de reclamações bem fundadas. Além disso, Argentina e Uruguai continuam divididos pelo conflito em torno das ¿papeleras¿, levado novamente pelo governo de Montevidéu ao Tribunal Internacional de Haia.

Que bloco é esse, perguntam com razão os uruguaios, incapaz de resolver um conflito de vizinhança entre dois sócios? O governo brasileiro insiste em qualificar o conflito como bilateral, justificando dessa forma sua omissão. Mas a crise, de fato, é regional, porque as autoridades uruguaias protestam contra a atitude brasileira. O Brasil, disse um funcionário do Uruguai durante a reunião da semana passada, não fez um só movimento para resolver o conflito durante sua presidência temporária.

Na semana anterior, durante a conferência de cúpula da Comunidade Sul-americana de Nações, em Cochabamba, na Bolívia, o presidente Hugo Chávez defendeu o enterro do Mercosul, por ele descrito como uma entidade inútil. Os governos do Brasil e da Argentina tentaram acomodar a situação, atribuindo ao presidente venezuelano uma posição construtiva. Em Brasília, na reunião do Mercosul, o chanceler do Uruguai, Reinaldo Gargano, deu a única resposta adequada: ¿Os que defendem que o Mercosul não serve para nada não deveriam estar no Mercosul.¿

As palavras de Gargano foram apropriadas ao destempero de Chávez. Foi uma atitude até certo ponto surpreendente, pois as queixas uruguaias confirmam, à sua maneira, o diagnóstico do presidente venezuelano. Uruguaios e paraguaios vêm procurando há mais de um ano um acordo comercial com os Estados Unidos. Criticam os sócios mais fortes por dificultarem a realização de pactos comerciais com o mundo rico. Uma autoridade uruguaia descreveu o Mercosul, há meses, como uma gaiola de ouro. Se errou, foi na descrição do material da gaiola em que seu país está preso.

Os sócios originais do Mercosul deveriam cuidar de suas diferenças e relançar sua agenda inicial, antes de tentar a expansão, disse um negociador paraguaio. Foi um comentário sensato, mas incompleto. O erro não está apenas em expandir o bloco antes de encaminhar a solução de seus problemas. O erro é mais grave: os novos sócios aceitos são a garantia da implosão do bloco. A não ser que se acredite que ele sobreviverá com o formato que Chávez lhe quer dar.