Título: Igualando o voto do eleitor
Autor: Cavalcanti, Sandra
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/12/2006, Espaço Aberto, p. A2

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a inconstitucionalidade da cláusula de barreira se baseou no direito que o eleitor tem de ver sua vontade, expressa no voto, respeitada integralmente. Essa lei, aprovada há mais de uma década, determinava que o partido que, do total das legendas apuradas para a Câmara dos Deputados, não conseguisse 5% em todo o País e 2% em pelo menos nove Estados deixaria de ter ¿presença parlamentar¿.

Exigência semelhante funciona há mais de 30 anos em várias democracias. Partido que não atinge os índices fixados fica fora do Parlamento. Continua a existir, a espalhar suas idéias, a arregimentar filiados, a convencer eleitores, mas não tem ¿vida parlamentar¿.

Previa-se que somente oito partidos conseguiriam superar a barreira. Quando o dia D chegou, em outubro último, sobraram apenas sete legendas.

Como sempre, no Brasil, as legendas sem eleitorado não aceitaram a lei e foram à luta. Foi briga fácil, pois o próprio texto da regulamentação da lei era cheio de falhas e dubiedades. E, para agravar a questão, todas as outras deficiências de nosso sistema eleitoral continuavam intactas. Voto proporcional. Fidelidade partidária. Fundo de financiamento de campanhas. Mais rigor na seleção de candidatos. Legislação mais dura para uso da máquina administrativa. Vigilância mais severa sobre fundos de pensão, ONGs, sindicatos e estatais.

Promulgados os resultados, o problema se instalou. Que dizia a regulamentação? Se uma determinada legenda não atingir os índices legais, os candidatos eleitos daquela legenda serão diplomados e tomarão posse. Mas a legenda partidária não entrará na Câmara!

O deputado eleito terá direito apenas ao voto. Terá gabinete e equipe, igual aos demais. Receberá o subsídio igual. Gozará de iguais mordomias, passagens, telefone, etc. Mas estará impedido de ocupar cargos de direção da Casa, na Mesa da Câmara, na presidência das comissões. No recinto da Câmara, seu partido deixa de existir. Não terá sede. Nem gabinetes de lideranças. Nem recursos regimentais de atuação no plenário. E não receberá mais os famosos recursos do Fundo Partidário... Como se vê, uma situação surrealista! Um deputado zumbi, circulando pela Casa...

Será que isso aconteceu nos países que adotaram a cláusula de barreira? É claro que não. Nos países onde a cláusula funciona, e muito bem, esse disparate nunca aconteceu. Lá, o deputado eleito pela legenda que não atinge os índices tem um prazo legal para se integrar à bancada de outra legenda, na qual vai atuar normalmente. Seu partido de origem, ainda que fora do cenário parlamentar, continuará a luta para arranjar eleitores.

Por que aqui não deu certo?

Porque, diga-se a bem da verdade, aqueles países dispõem de fundamentos sólidos no sistema eleitoral, fundamentos que aqui não existem e são detestados pelos populistas e demagogos que comandam o Congresso.

O primeiro fundamento é o tipo de voto que se pratica nessas democracias. Ninguém por lá adota o voto proporcional. O voto é distrital, puro ou misto. O segundo fundamento é a exigência da fidelidade partidária e programática, com regras duras e severas, para evitar a dramática folia de mudanças de legendas de nossos folgados representantes... O terceiro fundamento são as regras, também severíssimas, para os gastos nas campanhas.

Aqui, a perversidade do voto proporcional, a licenciosidade partidária e programática e a farra dos gastos de campanha tornam impossível pensar em qualquer solução séria.

Só o voto distrital igualaria, de fato, o peso e o valor do voto do eleitor, acabando com a distorção que ocorre na sua representatividade. O tamanho real das bancadas apareceria. O peso real do eleitor do Rio, ou de São Paulo, não continuaria a ser esmagado como hoje. O STF, que se preocupou com a ¿desigualdade¿ que a cláusula de barreira impõe ao voto do eleitor, por causa de um ¿deputado desigual¿, bem podia atuar nesse sentido.

A desigualdade do voto do eleitor não reside só na hora da cláusula de barreira. Reside no peso do voto. Por que um deputado federal, pelo Rio, por Minas ou por São Paulo, precisa conseguir tantos mil votos a mais do que um deputado pelo Amazonas, pelo Ceará ou por Santa Catarina? O deputado é representante do povo, não de um Estado. Na Câmara dos Deputados, ele legisla para o País. Os interesses específicos dos Estados que compõem a Federação são atribuição do Senado, em condições de rigorosa igualdade. Cada Estado tem direito a três senadores. O voto de cada um tem o mesmo peso e cada entidade federativa tem a mesma oportunidade. Portanto, nenhum Estado sairia prejudicado.

Só o voto distrital acabaria com a desigualdade do voto do eleitor. O distrito eleitoral é formado sempre por um número aproximadamente igual de eleitores. Isso iguala, na base, a representatividade de cada voto.

Mudariam de tamanho as bancadas? Certamente. Isso afetaria os Estados? Não. Para isso existe o Senado. E os partidos de aluguel, nanicos, históricos, de ocasião, o que aconteceria com eles? Seria muito melhor. Melhor para os partidos decentes e melhor para o discernimento do eleitor. O distrito eleitoral é a melhor base para crescer politicamente. É só examinar a trajetória brilhante do Partido Verde (PV) na Alemanha. Ou do Partido Popular (PP) na Espanha. Ou até mesmo a dos social-democratas e dos liberais em vários países da Ásia. No distrito, o partido cresce de verdade, filia adeptos, ganha eleições primárias e representa, de perto, o eleitor.

Sem essas mudanças no sistema eleitoral vamos continuar assistindo ao espetáculo oferecido pelo ¿Cirque de Brasília¿. Entrada paga e cara!