Título: Kirchner sacrifica o campo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/12/2006, Notas e Informações, p. A3

Quando o presidente Néstor Kirchner assumiu o governo, a Argentina estava quebrada. Havia declarado a maior moratória da história das finanças internacionais, não tinha em reserva divisas fortes para suas necessidades mínimas e enfrentava uma devastadora recessão que já durava mais de três anos. Hoje, o PIB argentino registra um crescimento invejável, entre 7% e 9%, e as reservas estão num nível bastante confortável. Não houve milagres. A economia se recuperou graças a algumas medidas artificiais, que por sua própria natureza não podem produzir resultados duradouros. A moratória foi transformada num monumental calote, que deu aos investidores estrangeiros um prejuízo que, segundo estimativas conservadoras, está na casa dos US$ 100 bilhões; e a demanda interna foi aquecida mediante a concessão de aumentos e abonos salariais - sem quaisquer ligações com eventuais aumentos de produtividade -, que estimularam o consumo e, portanto, a produção.

O que não foi artificial foi o comportamento da agropecuária. Graças a seu dinamismo - e aos bons preços do mercado internacional -, a Argentina pôde recompor suas reservas num nível bastante confortável, além de contornar a crise fiscal. Os produtos do campo proporcionam 80% das receitas argentinas em moeda forte e 6% da receita fiscal total do Estado.

Num governo normal, o setor agropecuário receberia um tratamento à altura de sua importância para a economia nacional. Mas Néstor Kirchner não está preocupado com os fundamentos da economia. Seu objetivo principal, do qual não se desvia, é a reeleição. Se tiver condições, permanecerá por mais um período na Casa Rosada. Se não, apostará na candidatura de sua mulher, senadora, ou de sua irmã, ministra. Quer criar na Argentina uma espécie de presidencialismo dinástico. E para isso não hesita em sacrificar a galinha dos ovos de ouro.

Ocorre que a política econômica de Kirchner produziu o crescimento do PIB - que partiu de bases muito baixas e hoje está no nível atingido há oito anos -, mas também uma inflação renitente, na marca dos 12,5%. E para a população argentina, que ainda tem na memória as misérias da hiperinflação, o desequilíbrio de preços é um pecado mortal que condena qualquer governante.

Como não tem paciência para esperar o amadurecimento dos frutos de uma política monetária sensata e tem uma irresistível vocação populista, Kirchner escolheu a mais primitiva e ineficaz política de combate à inflação: o controle de preços. Seu raciocínio foi linear. Como o preço da carne responde por 9,2% da cesta básica usada para medir a inflação - e o custo dessa cesta não pára de subir, tendo registrado um aumento de 1,65% no mês passado -, no início do ano ele impôs um controle de preço 'voluntário' e passou de 5% para 15% o imposto de exportação da carne. Queria, com isso, aumentar a oferta interna do produto e, em conseqüência, provocar uma queda de preços. Como o truque falhou, em março o governo praticamente proibiu as exportações de carne. Os preços no atacado, de fato, caíram, mas os retalhistas ficaram com a diferença e os produtores fizeram uma parede, mantendo o gado nos campos. Tendo o tiro saído pela culatra, Kirchner permitiu a retomada das exportações, limitadas a 65% dos volumes vendidos em 2005.

Mas os preços internos de carnes, verduras, frutas e legumes continuam congelados. Os preços dos insumos necessários à produção, no entanto, continuam subindo. O milho, por exemplo, essencial para a criação de frangos, subiu 40% em dois meses.

Daí o setor agropecuário ter iniciado no domingo passado uma greve de pelo menos nove dias, deixando de comercializar seus produtos em protesto contra a 'constante intervenção' do governo no setor. Mais de 80% dos produtores aderiram à greve e agora o governo ameaça com prisão os ruralistas que bloquearem estradas - o que não fez com os movimentos sociais que, há meses, interrompem as ligações com o Uruguai, em protesto contra a construção das 'papeleras'.

Se Kirchner estivesse verdadeiramente interessado em crescimento sustentado, teria adotado políticas sérias. Mas seu objetivo é a reeleição em 2007 e, para alcançá-lo, não hesita em sacrificar o setor agropecuário.