Título: 'O Brasil perdeu a iniciativa para Chávez'
Autor: Manzano Filho, Gabriel
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/12/2006, Nacional, p. A14

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, 'é um fenômeno novo na diplomacia continental, com um projeto revolucionário e determinação para levar adiante boa parte dele'. É inegável que há 'rivalidade potencial' entre ele e Lula, mas 'o presidente brasileiro já mostrou credenciais democráticas'.

Além disso, o interesse econômico enfraquece o discurso ideológico. 'Quando tomam decisões como uma expropriação, um desvio dos padrões internacionais, os países são rebaixados no horizonte da confiança internacional, e isso nenhum deles quer.'

É nesses e outros pontos que o ex-chanceler Luiz Felipe Lampreia baseia sua visão sobre o futuro do Brasil e da América do Sul, no momento em que os dois presidentes acabam de ganhar o segundo mandato. Ministro do Exterior por sete anos no governo FHC e vice-presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), ele define como 'arqueológico' o projeto de terceiro-mundismo de muitos países e não entende o barulho que se faz em nome da 'diplomacia Sul-Sul', linha que já existia. Nesta entrevista, Lampreia diz quais os cenários e próximos desafios externos de Lula.

A reeleição de Chávez é boa ou má notícia para o governo Lula?

Chávez é um fenômeno novo. Não é só um líder populista a mais, como Haya de La Torre (Peru), Getúlio Vargas ou Perón (Argentina). Ele é populista, mas também revolucionário. Chávez tem projeto, determinação e ambição para levar adiante boa parte de sua agenda. Sua presença cria uma tensão. E o Brasil perdeu a iniciativa para Chávez e tem tido uma posição ambígua em relação a ele. Às vezes creio que há desrespeito de parte dele para com o governo brasileiro.

O segundo governo Chávez já promete uma nova Constituição, que lhe dará mais poderes, entre os quais o de se reeleger mais vezes. Essa estratégia de acabar com a democracia usando as regras democráticas pode se espalhar?

Acho que existe uma diferença fundamental. Nunca conversei com Lula, mas conheço bem o Chávez. Lula não é Chávez. Não tenho dúvidas das credenciais democráticas do presidente brasileiro. E tenho certeza de que Chávez não tem credencial democrática alguma.

Que impacto isso pode ter na diplomacia brasileira? Cria tensão?

Cria sim. Porque há, potencialmente, um antagonismo e rivalidade entre Chávez e Lula. Nosso governo tem feito a política econômica que faz, mantém uma política de não-intervenção nos vizinhos, comporta-se por parâmetros aceitos pelo mainstream internacional. Chávez, não. Visita Kadafi, faz jogadas de marketing, financia atividades cinzentas em países vizinhos. Não é à toa que a Venezuela, apesar de imenso investimento diplomático, não conseguiu eleger-se para o Conselho de Segurança da ONU.

Na região, Chávez tem buscado alianças com a Bolívia e a Argentina. Como o Brasil deveria reagir?

Com a Bolívia certamente, Evo Morales é um discípulo admitido de Chávez. A Argentina não. Ela atravessou um momento difícil, em que emitiu bônus para refinanciar a dívida, foi ajudada e retribuiu. Néstor Kirchner é um peronista, com sua visão estatizante, nacionalista. Mas não é um revolucionário. E no geral, na América do Sul, o fator fundamental é a economia. Vivemos uma decepção geral, com a incapacidade de superar a pobreza. Isso é um fertilizante extraordinário para tudo o que é antidemocrático.

Os problemas do Brasil com a Bolívia revelam um conflito entre interesses diplomáticos e ideologia?

De fato prevaleceram convicções de Lula, em nome de seus 'compañeros'. Mas o que pesa é que há um fato novo, a presença econômica forte do Brasil na Bolívia, afetando arrecadação tributária, receita de exportação. E há fatos novos também nas relações com Argentina, Uruguai, condicionando de modo distinto as relações na região. São coordenadas muito concretas e o Brasil ainda não aprendeu a lidar com isso, a ser um 'cachorro grande'.

O que vai mudar numa América Latina sem Fidel Castro?

Não acho que vá mudar muita coisa. Essa obsessão com Castro é restrita a grupos internos dos EUA. Cuba não tem mais o peso do passado. Hoje a preocupação americana com nossa região é, principalmente, a imigração.